Amazonas

As dúvidas e suspeitas sobre Sou Manaus Passo a Paço 2023

O festival Sou Manaus Passo a Paço 2023, que deveria unir a revitalização do centro da cidade com apoio à cultura local, se transformou em uma mega produção que levanta as mais diversas suspeitas, da venda de ingressos até a segurança

O festival Sou Manaus Passo a Paço 2023 tem ocupado negativamente o centro das atenções do debate público na cidade nas últimas semanas. O evento, que deveria unir a revitalização do centro da cidade com apoio à cultura local, se transformou em uma mega produção que levanta suspeitas das mais diversas.

Da venda de ingressos, passando pela escolha das atrações, campanha de marketing, segurança e até o anúncio de patrocinadores, não faltam queixas e questionamentos à atual gestão municipal. O Vocativo listou uma série de dúvidas que a prefeitura precisa responder sobre o evento, que acontece nos dias 5, 6 e 7 de setembro, no centro da cidade e deve atrair, segundo estimativas, mais de 150 mil pessoas. A data coincide com o feriado que marca a elevação do Amazonas à categoria de Província. 

Enquanto isso, os poucos artistas e especialistas em movimento cultural local que decidiram falar (muitos não aceitaram por medo de represálias) alertam que, além de descaracterizado, a grandiosidade do evento pode colocar em risco o patrimônio público e a segurança dos participantes. Os órgãos de fiscalização e controle, enquanto isso, apenas assistem.

O que era o festival e o que se tornou

O evento teve a sua primeira edição em 2015 e se chamava apenas Passo a Paço, em alusão ao Paço da Liberdade, no Centro da cidade e teve público de 10 mil pessoas. A ideia era aproveitar o evento para revitalizar e ocupar o centro histórico de Manaus, integrando várias linguagens artísticas, promovendo acesso a cultura para população com shows locais e nacionais de forma gratuita. “Havia conexão da arte local com a nacional, aumentando a criação de público para os artistas manauaras”, explica Bel Martine, cantora e compositora Manauara.

Com o passar dos anos, o festival foi ganhando mais adeptos e expandindo. A prefeitura aproveitava o evento e revitalizava diversos prédios da região aproveitando o festival. Várias construções na Rua Frei José dos Inocentes, no centro histórico da cidade, por exemplo, chegaram a ser reformadas com a participação de empresas convidadas pela gestão pública. Algo que acabou se perdendo na atual gestão.

Desde 2022, ano em que aglomerações voltaram a ser permitidas após a fase aguda da pandemia, o festival mudou e passou a se chamar “Sou Manaus Passo a Paço”. Além da mudança de uma marca já consolidada há mais de 7 anos, o conceito inicial também mudou, dando mais atenção aos shows do que o fomento à cultura e revitalização de espaços.

“Foi revitalizada alguma coisa? Eles reformaram alguma praça? Ou só pintaram com a paleta de cores do [prefeito] David Almeida?” questiona Veridiana Tonelli, advogada e pesquisadora cultural, e graduanda em licenciatura de história na Universidade Federal do Amazonas (UFAM). De fato, nenhum anúncio de obra pública foi feito durante a divulgação do evento este ano.

Além disso, outros pontos culturais importantes do centro da cidade seguem inativos sem explicação. “O Les Artistes Cafe, que antigamente funcionava como um teatro para apresentações, hoje fica parado. O Centro de Arqueologia também não abre. Teremos um festival imenso, mas o patrimônio cultural não está acessível para a população”, critica Veridiana.

Mais excludente

Para a edição de 2023, a prefeitura resolveu “inovar” e resolveu privatizar parte do evento e buscar um maior volume de atrações nacionais, além do DJ e produtor musical francês David Guetta. Embora a entrada para o Sou Manaus seja gratuita, nesta edição dois setores vão exigir pulseiras, nos dois primeiros dias do evento (5 e 6 de setembro): o palco Guardião da Amazônia e o palco Amazona.

A população em geral que não puder pagar, terá a opção de pulseiras destinadas apenas para acesso a dois, de um total de sete palcos, limitadas a uma por cadastro de pessoa física (CPF). Elas serão trocadas, opcionalmente, por 1 quilo de alimento não perecível e/ou 30 garrafas de Polietileno Tereftalato (PET) de qualquer tamanho. Os ingressos para frontstage e camarotes variam de R$ 30 a R$ 30 mil.

Com todos as mudanças, os maiores prejudicados acabaram sendo justamente a população mais pobre e os próprios artistas. “Hoje, não é um evento feito para a população manauara. O prefeito falou várias vezes que está tentando vender esse evento como um case, para turistas. Agora, com toda essa dificuldade de acessibilidade, está claro que não é sobre democratizar o acesso ao lazer. Como artista, eu falo que também não é sobre celebrar a cultura local”, afirma a cantora Karen Francis.

Mesmo com orçamento milionário que permite à gestão municipal pagar um cachê de aproximadamente R$ 3 milhões para o DJ David Guetta, artistas locais importantes ficaram de fora da edição 2023 do Sou Manaus. Por falta de passagem, a banda amazonense Jambu, que fazia turnê em São Paulo, não entrou em acordo com a prefeitura e cancelou participação.

“Perdem o povo, a cultura, os artistas e a imagem turística cidade de Manaus. Estamos vivendo um circo de horrores. O prefeito nos priva de ter um direito garantido por lei que é de acesso a cultura com segurança e qualidade em prol de seus desejos pessoais e megalomaníacos. E o pior, nós é que estamos pagando essa conta. Inadmissível!”, protesta Bel Martine.

“Perdem o povo, a cultura, os artistas e a imagem turística cidade de Manaus. Estamos vivendo um circo de horrores”

Bel Martine, cantora

Boicotes e retaliação

Ao longo da semana, o Vocativo encontrou muitas dificuldades em conversar com artistas e produtores locais a respeito da situação, ainda que as críticas nas redes sociais sejam frequentes. A justificativa era o medo de boicotes em futuros eventos públicos.

Segundo Veridiana Tonelli, a causa é a perseguição promovida pela atual gestão da prefeitura. “Se os artistas não lambem a prefeitura, eles não são contratados e não tocam nos lugares. Há um risco de boicote nos editais. Vimos como foram confusos os editais do Edital Thiago de Mello. Chegamos a fazer uma manifestação e não tivemos uma boa resposta da prefeitura”, lamenta Veridiana.

A advogada lembrou ainda que, em breve, serão feitos os editais da Lei Paulo Gustavo (Lei Complementar nº 195, de 08 de julho de 2022), que dispõe sobre ações emergenciais destinadas ao setor cultural em decorrência da pandemia da Covid-19. Nesse sentido, a postura da gestão municipal gera receio na comunidade artística local. “Será se a prefeitura vai manter essa postura autoritária? Muitos ainda não se recuperaram e dependem desses recursos”, preocupa-se.

Riscos para a segurança

A realização de um festival para centenas de milhares de pessoas no centro de Manaus, com ruas estreitas e pouca iluminação, traz sérios riscos, segundo Veridiana Tonelli. “O Passo a Paço é fincado no centro histórico. Ele não tem como sair de lá.  Se o prefeito quisesse fazer um evento à imagem e semelhança dele, poderia ter feito um evento ou festival novo, em outras partes da cidade, que são mais adequados a uma grande quantidade de gente, o que não é o caso do centro”, sugere.

Vale lembrar que, em 2022,  o Vocativo noticiou que o evento foi acusado por frequentadores de desorganização e problemas no transporte. Artistas, por sua vez, reclamaram de descaso, desrespeito e falta de diversidade religiosa. Durante o show da cantora Duda Beat, frequentadores passaram mal por conta da lotação. Detalhe: o público estimado no ano passado foi de 60 mil pessoas, menos da metade do que está previsto para este ano: 150 mil.

Contas suspeitas

Não bastasse a falta de diversidade religiosa e a descaracterização do conceito do evento, sobram dúvidas sobre a legalidade dos gastos da prefeitura com o festival e a sua relação com patrocinadores. O Portal da Transparência do município, por exemplo, não discrimina os valores utilizados no Sou Manaus e com a ManausCult. Pra se ter uma ideia, o Vocativo pediu acesso aos contratos da edição de 2022 via Lei de Acesso à Informação e até hoje, às vésperas da edição de 2023, ainda não recebeu.

Para a edição deste ano, a prefeitura disponibilizou “cotas de patrocínio” para o evento, a Onça-Pintada, Vitória-Régia, Tambaqui, Saterê e Master, os quais variavam de R$ 50 mil a R$ 2 milhões. O primeiro edital de chamada não obteve interessados. Foi realizado então um novo chamamento público, no qual a PUMP Entertainment, nome fantasia da Nosso Show Gestão e Eventos LTDA, foi a vencedora.

Para a escolha da PUMP, o prazo entre o lançamento do edital e o anúncio da vencedora aconteceu em quatro dias. Isso oficialmente, uma vez que o proprietário da empresa, Bernard Teixeira, aparece em diversas postagens nas redes sociais interagindo com o prefeito David Almeida e perfis oficiais da ManausCult e prefeitura de Manaus falando abertamente sobre atrações do Sou Manaus.

A advogada Veridiana Tonelli afirma que o ato da prefeitura divulgar atrações e celebrar parcerias com empresários que viriam a vencer os processos licitatórios é altamente suspeito. “Licitação é um procedimento administrativo fechado. Como assim, antes de começar o processo, eles fizeram anúncio com uma das pessoas que acabou ‘magicamente’ ganhando o edital? Isso nos faz pensar como está sendo feito o manejo de recursos públicos”, lamenta a jurista.

O Vocativo encaminhou uma série de perguntas para a prefeitura e até o momento não obteve resposta. Dentre elas, por que não consta no portal da Transparência o contrato de locação do porto, dos artistas que vão se apresentar, bem como toda a estrutura logística do evento, além de cópias dos mesmos. Vários jornalistas da cidade relataram o mesmo silêncio da gestão municipal.

Também não foi mostrado o contrato de locação de uma loja em dos shoppings mais ricos da cidade para a venda de artigos do festival, dentre outras perguntas. A própria divulgação do evento na Times Square, de Nova Iorque, também foi alvo de questionamentos. A prefeitura, até o momento da publicação desta matéria, não divulgou as informações pedidas.

Enquanto isso, os órgãos de controle e fiscalização pouco ou nada fazem. A Câmara Municipal já recusou por duas vezes convocar a prefeitura e a ManausCult para dar esclarecimentos. O Ministério Público do Amazonas (MPAM) não respondeu os contatos do Vocativo ao longo da semana. A Defensoria Pública do estado (DPE-AM) e o Ministério Público de Contas (MPC-AM) recomendaram a suspensão de venda de ingressos, mas a prefeitura sequer se manifestou a respeito.

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