Contexto

Voto impresso – Parte 01: a quem interessa e por que?

Um dos temas que mais tem agitado a política brasileira nos últimos tempos é o voto impresso. Mas afinal, a quem interessa essa mudança? Que consequências ela pode trazer? O sistema de votação é seguro ou vulnerável? É o que você vai conferir nessa série de duas reportagens sobre o assunto

Um dos temas que mais tem agitado a política brasileira nos últimos tempos é o voto impresso. Desde antes do começo do seu mandato, o presidente Jair Bolsonaro (Sem Partido) e seus apoiadores questionam a confiabilidade das urnas eletrônicas brasileiras e fazem campanha pelo que chamam de “voto impresso e auditável”.

Essa semana, porém, houve uma mudança nesse cenário, quando partidos de oposição ao presidente, como o PSB de Alessandro Molon e o PDT de Ciro Gomes também apoiaram a ideia. Mas afinal, existe motivo para desconfiança sobre o sistema eleitoral? Há risco de instabilidade política caso o voto impresso seja adotado? O Vocativo procurou especialistas para entendermos melhor esse assunto.

Por ser um tema extremamente complexo, o material foi dividido em duas partes. Na primeira, publicada neste sábado (29/05), especialistas analisam o cenário político complexo no qual ocorre esse debate, suas motivações e as possíveis consequências que essa mudança pode trazer para a nossa democracia.

Críticas sem respaldo

Em diversas ocasiões, o presidente Bolsonaro afirma com todas as letras que as eleições de 2018 foram fraudadas e ele teria vencido no primeiro turno. Recentemente, disse inclusive que as eleições anteriores, em 2014, também foram fraudadas e que o então candidato Aécio Neves deveria ter sido eleito. O presidente, no entanto, nunca apresentou qualquer prova das acusações.

O principal temor da oposição é que ocorra no Brasil nas eleições gerais de 2022 o mesmo que ocorreu nas eleições presidenciais dos Estados Unidos em 2020. Na época, o então presidente Donald Trump acusou a votação de fraude, mesmo sem qualquer prova e incentivou atos de violência de seus apoiadores em janeiro. Bolsonaro poderia incentivar apoiadores armados a causar tumultos pelo país. Alguns temem até um possível golpe de Estado do presidente.

Atualmente, tramita na Câmara dos Deputados a PEC 135/19, da deputada bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF), que exige a impressão de cédulas em papel na votação e na apuração de eleições, plebiscitos e referendos no Brasil. Pelo texto, essas cédulas poderão ser conferidas pelo eleitor e deverão ser depositadas em urnas indevassáveis de forma automática e sem contato manual, para fins de auditoria. Parece seguro na teoria, certo? Na prática, porém, pode não ser tão simples assim.

“Imaginem que passe esse ‘aperfeiçoamento da urna eletrônica’ para imprimir o voto de cada eleitor. Se alguém apertar um número e disser ao mesário que apertou outro? De propósito ou por se confundir mesmo. Como vai resolver? E se muitas pessoas fizerem isso?” alerta Daniel Dourado, médico, advogado sanitarista e pesquisador da Universidade de São Paulo (USP), em sua conta no Twiter.

Uma das justificativas para o projeto – a alegação de fraude nas eleições – não encontra respaldo na história do país. “Não há uma única denúncia específica, pontual e documentada sobre fraudes que tenham havido no sistema eletronico e nem há qualquer levantamento que aponte que a população tem dificuldades significativas no manejo das urnas ou que pessoas estariam excluídas do sistema por causa da forma de votação. A questão do voto impresso é uma solução para um falso problema”, afirma Felipe Freitas, mestre em Direito pela Universidade de Brasília e pesquisador do Núcleo de Justiça Racial da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

O argumento de que os votos atualmente não são auditáveis também não é verdadeiro. De acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), existe a chamada Auditoria de Funcionamento das Urnas Eletrônicas (Votação Paralela), que é realizada por todos os tribunais regionais eleitorais por meio de amostragem. O processo é detalhado no site do tribunal.

PEC surgiu no governo Bolsonaro

A PEC 135 surgiu no primeiro ano do governo Bolsonaro. Apesar disso, vale lembrar que mesmo tendo sendo eleito deputado federal por quase 30 anos, o presidente nunca questionou a lisura do processo que o levou ao Congresso ao longo dos anos.

“Precisamos parar e fazer as seguintes perguntas: se o sistema eleitoral é falho, por que até hoje não há evidências que comprovem? Se o sistema é falho, Bolsonaro e seus três filhos foram eleitos em processos fraudulentos? Por que ele só levanta essa dúvida quando é candidato, mas logo depois deixa de mencionar?”, questiona Carolina Botelho, cientista política, professora e pesquisadora da Universidade Presbiteriana Mackenzie e do Doxa/IESP/UERJ.

A cientista também aponta a dificuldade logística em implementar um novo sistema pouco mais de um ano antes das eleições, lembrando que a PEC ainda tem meses de tramitação no Congresso. “É necessário entender que uma operação como a de uma mudança no sistema eleitoral seria cara aos cofres públicos e demandaria uma readequação de toda logística por parte do Tribunal Superior Eleitoral junto às zonas eleitorais. Isso requer tempo e não pode ser feito há um ano do calendário eleitoral de um país com as dimensões do Brasil”, critica.

Responsabilidade. Ou falta dela

Independente da segurança ou não, as declarações do presidente geram instabilidade política. Algo extremamente perigoso em tempo e país dividido por tanta polarização política. “Essa discussão promovida por uma liderança francamente anti-democrática mira apenas um alvo: disseminar suspeitas entre a população sobre uma suposta falta de credibilidade no funcionamento das instituições, a despeito de todo teste e checagem feitos pelo STE para medir possíveis falhas”, afirma Carolina Botelho.

O histórico do presidente de atacar as Instituições do país reforçam esse temor. “No caso das urnas, o alvo é o processo eleitoral. Durante a vida política do atual presidente foram inúmeras as falas que tentam tirar o crédito das instituições de nossa democracia. Mas diferentemente de quando era um deputado inexpressivo, que ficava restrito ao seu reduto eleitoral, hoje é presidente, o que eleva a gravidade dessas declarações assim como aumenta o alcance delas”, analisa.

“É evidente que o voto impresso seria um retrocesso seja por causa da demora na apuração, pelo maior risco de fraude, pela vulnerabilidade das pessoas a ameaças. Todavia,o mais grave disso tudo é que qualquer proposta de mudança, a julgar pelas declarações atuais e antigas do presidente da república, não passa de uma tentativa de questionar o resultado das urnas”, alerta Felipe Freitas.

Para o advogado, Não por acaso este debate se aquece sempre que pesquisas mostram que o presidente Bolsonaro está atrás nas pesquisas de intenção de voto. Bolsonaro está alimentando a dúvida, criando desinformação e usando o congresso nacional para disseminar instabilidades. Espero que o Congresso seja firme, rejeite a proposta apresentada e, o mais importante, reafirme a confiança na Justiça Eleitoral, nos técnicos do TSE e na solidez das instituições.

A seguir

Por outro lado, apesar das suspeitas por trás das motivações do presidente e seus seguidores, há pessoas que realmente possuem dúvidas sobre a segurança do processo eleitoral. O sistema é realmente seguro? Ele é vulnerável? Ele pode ser melhorado? É o que você vai ver na segunda parte dessa matéria, que será publicada neste domingo (30/05). Até lá.

Foto: Pedro França/Agência Senado


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