Territórios

Por que a BR-319 também é um risco para a saúde pública

Nos últimos meses, a classe política do Amazonas montou uma verdadeira força-tarefa para pressionar o governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT) pela pavimentação da rodovia BR-319, que liga Manaus a Porto Velho, em Rondônia. A obra em si já é bastante controversa, uma vez que não faltam estudos alertando sobre os grandes impactos ambientais que ela traria.

Mas, não é a apenas o meio ambiente que está em perigo. Cientistas ouvidos pelo Vocativo alertam para outro risco: o surgimento de novas doenças (e o ressurgimento de velhas conhecidas) vindas do contato da biodiversidade da floresta com o ser humano, especialmente em grandes centros urbanos, como Manaus.

“Embora o surgimento de novas e catastróficas doenças não seja exatamente algo certo, existe essa possibilidade e não seria sensato pagarmos para ver, especialmente em estados como o Amazonas, histórica e mundialmente conhecido por seguidos fracassos no enfrentamento de problemas sanitários, como a Covid-19”

Jesem Orellana, epidemiologista e pesquisador da Fiocruz Amazônia

Saltos entre espécies

Há algum tempo, se sabe que um patógeno (vírus e bactérias, por exemplo) transmitido em determinada espécie de ser vivo, pode alterar sua dinâmica de contágio e começar a ser transmitido entre indivíduos de outras espécies, incluindo humanos. Esse fenômeno é chamado “spillover”, ocasião em que, literalmente, se observa um “salto” de determinado patógeno entre diferentes espécies.

Aliás, é o que parece ter acontecido em diversas oportunidades ao longo dos séculos, desde bactérias causadoras da peste bubônica na Europa no Século XIV, por exemplo, até os vírus da Gripe Suína ou da Gripe H1N1, no Século XX. A gripe aviária que contamina mamíferos e aves silvestres nos últimos meses é mais um exemplo de como patógenos podem saltar de humanos e espécies domésticas para espécies silvestres e vice-versa.

Nesse ponto você deve estar se perguntando: “Ok, mas o que isso tem a ver com a BR-319”? Tudo! A expansão das atividades humanas para regiões de matas e florestas, naturalmente habitadas por animais silvestres, é um aspecto que favorece ainda mais esse mecanismo. A reconstrução de uma pista de 885 km em linha reta dentro da Floresta Amazônica poderá ser o cenário perfeito.

E não são apenas novas doenças que preocupam. Outras velhas conhecidas da população da Amazônia como a Malária, a Leishmaniose, as Hepatites virais, a Tuberculose e outras arboviroses, como Dengue, Chikungunya ou Zika vírus, só para dar alguns exemplos, podem aparecer em novos surtos.

É justamente essa ruptura na “barreira natural” entre humanos e patógenos “selvagens”, que torna plenamente possível o surgimento de novas (e antigas) doenças em humanos e, consequentemente, as pandemias. “Embora o surgimento de novas e catastróficas doenças não seja exatamente algo certo, existe essa possibilidade e não seria sensato pagarmos para ver, especialmente em estados como o Amazonas, histórica e mundialmente conhecido por seguidos fracassos no enfrentamento de problemas sanitários, como a Covid-19”, avalia Jesem Orellana, epidemiologista e pesquisador da Fiocruz Amazônia.

“Qualquer empreendimento que suprima a floresta em áreas remotas (seja para sua instalação ou uma consequência de ações posteriores e ilegais) e que aumente o tráfego de pessoas vai consequentemente aumentar os contatos entre animais e pessoas”

Daniela Bôlla, bióloga e mestre em Ecologia pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA)

Contatos perigosos

A abertura de novas estradas obrigatoriamente causa a perda de habitat para a biodiversidade, além de introduzir coisas novas ao sistema, principalmente mamíferos e suas doenças (pessoas, cães, gado, ratos, entre outros). Acabando com o espaço de alimentação, abrigo e reprodução desses animais, os humanos aproximam-se deles e facilitam o contato direto e indireto.

“Qualquer empreendimento que suprima a floresta em áreas remotas (seja para sua instalação ou uma consequência de ações posteriores e ilegais) e que aumente o tráfego de pessoas vai consequentemente aumentar os contatos entre animais e pessoas”, explica Daniela Bôlla, bióloga e mestre em Ecologia pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA).

Nesse caso, o problema não é só a derrubada da floresta, mas o que isso faz com as espécies que moram lá e, principalmente, com quem faz essa derrubada. “O aumento dos contatos aumenta as chances de um patógeno sair da floresta e contaminar humanos, que vão posteriormente se contaminando em cadeia, assim como o contrário, com consequências pouco previsíveis”, avalia a cientista.

Com uma eventual pavimentação da BR-319, será inevitável o contato entre humanos e um amplo conjunto de formas de vida existentes na floresta e nos rios, incluindo toda sorte de vírus, bactérias e fungos, por exemplo. “O preocupante avanço desses projetos irracionais, resultam cada vez maior não apenas em extensa e irreversível degradação do meio ambiente, como também em janelas de oportunidade para o surgimento de surtos, epidemias e, até mesmo, pandemias tão ou mais devastadoras como a de Covid-19”, opina Jesem Orellana.

Perigo para as cidades

Para uma zoonose (doenças infecciosas de circulação animal que podem ser transmitidas para os seres humanos) se tornar epidêmica é preciso uma série de diferentes fatores, desde ecológicos, epidemiológicos até comportamentais, incluindo a mobilidade humana como um fator de importância. E é aí que mora o perigo para as populações de Manaus e Porto Velho, que seriam caminho da rodovia.

No Brasil, a dependência socioeconômica de cidades menores com capitais e grandes metrópoles aumenta o potencial epidêmico das zoonoses, uma vez que habitantes de regiões interioranas precisam realizar deslocamentos frequentes em busca de bens e serviços.

Vale lembrar que é justamente o suposto isolamento geográfico a maior desculpa pelo lobby da BR-319. “Bichos que estavam no interior da floresta – já com seus patógenos – encontram humanos que vivem aglomerados – com outros patógenos. Isso aumenta os contatos e, automaticamente, as chances de um patógeno saltar da floresta para a cidade”, afirma Daniela Bôlla.

Brasil pode ser o local da próxima pandemia

E para quem acredita que essa matéria é muito alarmista, pense de novo. Um estudo liderado por pesquisadoras do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) e publicado na revista científica Science Advances aponta que os recentes aumentos nas vulnerabilidades sociais e ecológicas do país estão tornando a possibilidade da próxima pandemia começar no Brasil algo bastante real.

Segundo esse estudo, a combinação de cenários políticos e econômicos acende o alerta para a propensão da megadiversidade brasileira atuar como incubadora de possível pandemia provocada por essas zoonoses. Para quem não lembra, aliás, o Vocativo fez material sobre isso em abril de 2021.


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