Contexto

Os perigos do Novo Arcabouço Fiscal do governo Lula

A Câmara dos Deputados aprovou nesta terça-feira (23/05/2023) o Projeto de Lei Complementar (PLP) 93/23, novo regime fiscal para as contas da União que vai substituir o atual Teto de Gastos (antiga Emenda Constitucional 05/2017), batizado de Novo Arcabouço Fiscal (NAV). Embora seja celebrada como grande avanço, economistas ouvidos pelo Vocativo alertam que o projeto, além de desnecessário, pode trazer sérias consequências para investimentos sociais e até para a democracia no país.

Como é agora e como passa a ser

Em comparação ao antigo teto de gastos (recomendo que você leia a matéria do Vocativo sobre isso), o novo regime protege um pouco mais os gastos públicos, tornando a meta de resultado primário menos rígida, uma vez que agora estabelece uma margem entre os limites inferior e superior. Antes, o governo simplesmente não podia gastar em despesas como saúde e educação e ponto final.

A proposta do Governo Federal estabelece um novo teto para o crescimento percentual dos gastos primários reais do governo entre 0,6% (piso) e 2,5% (teto). Dentro desta banda, a despesa pode crescer até 70%, mas apenas se o governo aumentar sua arrecadação.

Com o antigo teto, os investimentos públicos eram sacrificados quando o governo realizava um ajuste fiscal. Este fato levou, desde 2017, ano em que foi criado, a um dos níveis de investimento públicos mais baixos da história, insuficiente até para repor a depreciação do estoque de capital do governo. Parece um avanço, certo? Mas não é bem assim.

Mas ele é mesmo necessário?

A fonte da “inspiração” do governo para limitar gastos parece vir do que se pratica em alguns países europeus, que adotaram regras de gasto público estabelecendo como teto para o crescimento do gasto público a taxa de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) potencial. Entretanto, a hipótese que justifica as práticas europeias supõe que a taxa de crescimento do gasto público não afeta sistematicamente a taxa de crescimento da economia. De acordo com alguns especialistas, trata-se de uma premissa falsa.

De acordo com análise dos professores Kaio Pimentel, Doutor em economia e professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ) e Daniel Conceição, professor de Economia também no IPPUR/UFRJ e presidente do Instituto de Finanças Funcionais para o Desenvolvimento (IFFD), além de questionar a necessidade desse tipo de política, é preciso observar a história.

“Não é uma coincidência que no Governo Lula 2 observou-se a maior taxa de crescimento médio para a economia brasileira (4,5% a.a), justamente quando a despesa primária mais cresceu nos últimos 30 anos (pelo menos). Assim, a utilização da experiência europeia como exemplo a ser seguido é inadequada, seja porque são países que já têm um PIB per capita bem maior que o brasileiro, seja porque são países que crescem pouco e abriram mão do exercício pleno de suas soberanias monetárias. Se o propósito é de fato dar uma guinada no crescimento da economia brasileira, por que não se aproximar da política fiscal das economias que mais cresceram nas últimas décadas?”, questiona a dupla.

Outro momento histórico foi vivido recentemente, com a pandemia da Covid-19. ” governo elevou o gasto federal de maneira deficitária enormemente (chegando a incríveis 750 bilhões de déficit primário em 2020) ao mesmo tempo em que postergou o recebimento de impostos para possibilitar as medidas de isolamento social. Apenas com o auxílio emergencial, foram gastos mais de 230 bilhões de reais em 2020. Em nenhum momento o governo enfrentou qualquer dificuldade para ‘financiar’ gastos tão significativos”, relembram os economistas.

“Nossa opinião é que o NAF não está à altura do atual desafio econômico brasileiro. Tampouco leva na devida consideração o que é compatível com as atuais condições da economia brasileira. Cabe lembrar que foi a tentativa fracassada de ajuste fiscal em 2015, instituída pelo governo de Dilma Rousseff, que jogou a economia brasileira em sua recessão mais profunda e duradoura”, avaliou a dupla.

Desequilíbrio de poderes

Outra consequência do antigo Teto de Gastos e que também está presente no Novo Arcabouço Fiscal apresentado pelo relator é o desequilíbrio entre poderes da República, como explica André Doneux, Doutor em Filosofia pela USP e Diretor de Comunicação do IFFD.

“O antigo teto de gastos aprofundou o desequilíbrio entre os poderes, uma vez que o Executivo se tornou dependente da formação das maiorias de 2/3 necessárias à aprovação de Propostas de Emenda Constitucional (PECs) para realizar alterações na Lei Orçamentária Anual, que antes da EC95 exigiam apenas maiorias simples. Assim, a sociedade brasileira também acompanhou o uso de dispositivos pouco republicanos como as emendas de relator para a formação das grandes maiorias parlamentares exigidas pelo teto de gastos”, relembra Doneux. Emendas de Relator ficaram conhecidas mais tarde como Orçamento Secreto.

Nesse ponto, Doneux avalia que o NAF melhora o relacionamento entre poderes. Para ele, o novo teto dá um passo fundamental para que o governo não seja obrigado a desperdiçar o seu capital político com PECs que simplesmente visam responder a emergências e crises, mitigar conflitos orçamentários pontuais ou atender aos diferentes interesses políticos impostos a cada momento.

Mas mesmo essa vantagem tem um porém. “Se o novo teto de gastos torna melhor administráveis os conflitos orçamentários permitindo que a relação do Executivo com o Legislativo possa se reestabelecer, por outro lado, essa nova versão não encerra a lógica de acirramento intencional de disputas orçamentárias inaugurada pelo teto de gastos anterior para obrigar o Congresso Nacional e o governo à realização de ‘reformas estruturais’ de teor neoliberal”, afirma. Em outras palavras: esse novo arcabouço mantém o governo refém do Legislativo para aprovar medidas que precise.

Riscos sociais

A maior crítica feita ao antigo e o novo teto de gastos diz respeito à área social. Se antes a EC 95 suspendia por vinte anos os pisos constitucionais que vinculam os gastos com saúde e educação às receitas. A versão do teto de gastos apresentada pelo atual governo vai além, e requer a alteração definitiva desse dispositivo constitucional.

Isso porque uma das novas regras fiscais propostas vincula a ampliação de gastos públicos ao aumento da arrecadação tributária nos 12 meses que antecedem junho em comparação com o mesmo período do ano anterior. A regra impõe à ampliação real de gastos públicos um limite máximo de 70% do aumento de arrecadação.

“Caso os gastos com saúde e educação crescessem a 100% do aumento de receitas, como ordena a Constituição, eles consumiriam os recursos que seriam distribuídos às demais áreas do governo, submetidos ao limite de crescimento máximo de recursos de 70%. É preciso enfatizar, ainda, que a regra prevê um limite ainda mais rígido, de 50%, caso o governo descumpra a meta de resultado primário no ano anterior”, alerta André Doneux.

A outra regra fiscal prevista no PLP 93 obriga o crescimento real de gastos públicos a permanecer no intervalo entre 0,6% e 2,5%. Assim, mesmo que a arrecadação de um ano surpreenda positivamente, os gastos não poderão ser ampliados para além do limite de 2,5%. Tal limite é inferior à média de crescimento de gastos públicos da maioria dos governos que sucederam à promulgação da Constituição Federal de 1988.

Pra se ter uma ideia do problema, simulações preliminares mostram que se o NAF tivesse sido adotado em 2003, parte substantiva do gasto federal que ajudou no crescimento econômico brasileiro e atenuou nossas fraturas sociais não poderia ter sido feito. “Para que tenhamos ideia da diferença, nos Governos Lula (1 e 2) a despesa primária cresceu 7,2% ao ano e contribuiu (e muito!) para o crescimento da economia brasileira. Por outro lado, a redução violenta do ritmo de crescimento das despesas primárias a partir de 2015 contribuiu muito para a contração econômica em 2015 e 2016 e baixíssimo crescimento desde então”, explica Kaio Pimentel.

Riscos para a democracia

Além das questões sociais, políticas de austeridade fiscal possui mais um fator de risco: a democracia. “Economistas e gestores públicos deveriam ter aprendido um pouco mais sobre as consequências políticas da austeridade fiscal baseada na restrição de despesas públicas. Ao produzirem estagnação econômica e desemprego desnecessários, governos progressistas acabam contribuindo para que forças reacionárias ganhem apoio da população e cheguem ao poder por meio do voto popular”, afirma Kaio Pimentel.

Recursos fundamentais

Embora a lógica de mercado esteja sendo dominante nos debates na mídia, os economistas ouvidos pelo Vocativo são unânimes em apontar que as políticas são centrais para um país que procure alterar sua condição estrutural de expressiva desigualdade.

“Reduzir desigualdades deve ser visto como um caminho a ser seguido porque os mecanismos que permitem que nós alcancemos isso é também uma ferramenta de ativação econômica e de geração de emprego, o que fortalece a capacidade geradora de renda fortalecendo a melhora da qualidade de vida de forma geral. Por isso, as políticas sociais e os investimento em infraestrutura  devem ser vistos como prioritários no debate sobre o papel do estado e do próprio uso do orçamento público”, alerta Cassiano Trovão, professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

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