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Lobby da mineração busca cooptar indígenas no Amazonas

Lideranças indígenas Mura desmentiram afirmações do governo do Amazonas de que a etnia se mostrou favorável ao projeto da empresa Potássio do Brasil em Autazes, a 112 quilômetros da capital. Em entrevista coletiva nesta terça-feira (10/10/2023), onde nenhum veículo de TV esteve presente, o grupo afirmou que políticos e a direção da empresa estão pressionando indígenas para a aprovação do projeto, que foi suspenso pela Justiça Federal em agosto deste ano.

Em entrevista coletiva, Muras denunciaram ação do governo e da Potássio do Brasil. Foto: Fred Santana

No último dia 25 de setembro, o governo do Amazonas divulgou um comunicado de imprensa afirmando que representantes indígenas da etnia Mura teriam manifestado apoio ao avanço na exploração do potássio no município em projeto da mineradora Potássio do Brasil. A reunião, no entanto, teria sido manipulada para ter apenas indígenas favoráveis ao projeto e sem a presença do Ministério Público Federal do Amazonas (MPF-AM), que acompanha o caso.

Reunião teria excluído lideranças e pode ser considerada irregular. Foto: Diego Peres / Secom

“A gente não foi convidado. Inclusive eu recebi a mensagem no dia da reunião. E a gente não foi porque a gente não tinha reunido para dar uma decisão”, alertou o Tuxaua Sérgio Mura, da Aldeia Soares. Também presente na coletiva, o procurador da República do Ministério Público Federal do Amazonas (MPF-AM), Fernando Merloto Soave afirmou que o encontro na sede do governo não teve a participação do órgão federal.

“Essa declaração de que o povo Mura é a favor da mineração não é verdade. Infelizmente, aproveitaram esse momento da mídia e do governo, que estão vendendo a mineração como única forma de economia do nosso estado. Mineração nunca será bom para os povos indígenas. Antes de acontecer já estamos vendo problemas. Lideranças se corrompendo, que não estão defendendo nossos interesses, mas interesses próprios”, denunciou William Mura, da Organização das Lideranças Indígenas do Povo Mura do Careiro da Várzea.

“Hoje estamos passando por essa pressão de uma economia abusiva. E isso parte dos governos estaduais, municipais e federal, além das grandes empresas”, reclamou Mariazinha Baré, coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Amazonas. Ela fez ainda um alerta aos indígenas que manifestaram apoio ao projeto. “É ilusão nossa, enquanto indígenas, achar que os maiores beneficiados por esse tipo de empreendimento seremos nós. O que vai restar pra gente é prostituição e a contaminação dos nossos rios, terras e peixes”, afirmou.

Vale lembrar que uma matéria do Vocativo de agosto deste ano ouviu diversos especialistas que explicaram que esse tipo de empreendimento, além de diversos impactos ambientais, também possui graves consequências sociais e pode não gerar a arrecadação esperada.

Participaram do encontro em questão com o governador os deputados estaduais Roberto Cidade, presidente da Assembleia Legislativa do Amazonas, Sinésio Campos, Felipe Souza e Delegado Péricles; e os secretários estaduais de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação (Sedecti), Serafim Corrêa; de Mineração, Gás e Energia (Semig), Ronney Peixoto; o secretário-chefe da Casa Civil, Flávio Antony; o diretor-presidente do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam ), Juliano Valente; e o prefeito de Autazes, Andreson Cavalcante.

O líder de Soares, tuxaua Sérgio Nascimento, afirmou ao Vocativo que o simples processo de estudos para exploração da Potássio do Brasil já está causando impactos na região. “Sabemos que é um empreendimento que pode gerar economia, mas mas também sabemos que vai nos trazer muito impacto principalmente aqui pra nós da aldeia. Ele está dentro do nosso território”, afirmou. “Vou citar um exemplo: quando eles estavam pesquisando e perfurando aqui, eles entravam com lanchas dia e noite. Era um barulho imenso dia e noite”, lamentou.

Também foi falado durante a coletiva sobre uma reunião envolvendo o presidente da Potássio Brasil, Adriano Espeschit, com indígenas da Aldeia Soares no último dia 22 de setembro, três dias antes da reunião na sede do governo do Estado. Um áudio vazado mostra o empresário fazendo uma série de promessas de construção de escolas e postos de saúde, além de alegações falsas envolvendo o projeto para tentar convencer os indígenas a apoiar o projeto. Em tom de comício político, Espeschit disse, dentre outras coisas, que o empreendimento estaria fora de área indígena, o que não é verdade,  e que a concessão duraria apenas 20 anos.

Quando eles [Potássio do Brasil] estavam pesquisando e perfurando aqui, eles entravam com lanchas dia e noite. Era um barulho imenso dia e noite

Tuxaua Sérgio Nascimento

Para o procurador Fernando Merloto Soave, o próprio caráter sigiloso do encontro de Espeschit com os Mura já configura quebra do protocolo de consulta definido pela comissão 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais. “Quais são os elementos da consulta? Prévia boa-fé, que ela seja culturalmente adequada, transparente, enfim. Quando você tem falsas promessas que rompem esses elementos, em princípio, você já está violando a própria consulta. Todo esse processo é invalidado”, explicou o procurador.

Soave ressaltou ainda que as promessas feitas por Adriano Espeschit de construir escolas e postos de saúde são questionáveis porque devem ser cumpridas pelo poder público, não pela Potássio do Brasil. E o pior: podem significar omissão proposital do governo do Amazonas.

“Isso acende um alerta. Quando o poder público é a favor de um empreendimento que é contra os indígenas, será que ele não está se omitindo e propositadamente deixando de levar esses serviços para essas aldeias justamente pra dar esse argumento para a empresa?”, questionou o procurador. Ele afirmou ainda que o MPF-AM está estudando possíveis consequências legais da manobra envolvendo o governo do Amazonas e a Potássio do Brasil.

“Quando o poder público é a favor de um empreendimento que é contra os indígenas, será que ele não está se omitindo e propositadamente deixando de levar esses serviços para essas aldeias justamente pra dar esse argumento para a empresa?”

Fernando Merloto Soave, Procurador da República do Ministério Público Federal do Amazonas (MPF-AM)

MPI afirma estar monitorando a pressão

Em nota enviada ao Vocativo, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), por meio do Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Indígenas, afirma posição enfaticamente contrária ao projeto e lembra que o Ministério Público Federal (MPF), por meio de Ação Civil Pública (ACP), questiona o licenciamento ambiental estadual concedido.

Segundo a pasta, além de não ser o procedimento legalmente correto, o projeto da Potássio do Brasil foi levado adiante sem a apresentação do Estudo de Componente Indígena (ECI) e sem a realização da consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas que serão direta e indiretamente afetados, nos moldes da Convenção 169, da OIT. 

O MPI também reafirmou a inconstitucionalidade do projeto, que por ter área de influência sobre territórios indígenas demarcados ou em processo de demarcação, só poderia ser levado adiante após autorização do Congresso Nacional e ouvidas as comunidades afetadas (vide § 3º, do art. 231 da Constituição Federal). 

“Há sobreposição do projeto e sua área de influência com sete terras indígenas regularizadas ou de domínio indígena, concentrando mais de 1.164 famílias. As aldeias Paracuhuba e Jauary, por exemplo, estão em um raio de 10km do empreendimento, o que já seria fator impeditivo para a autorização de pesquisa mineral na área”, afirmou na nota.  

Ainda segundo o Ministério, a definição dos limites que determinam a área de influência dos empreendimentos em relação a terras indígenas está na Portaria Interministerial 60/2015. Na região da Amazônia Legal, empreendimentos de porto e mineração em até 10 km de distância de terras indígenas, linhas de transmissão até 8km e rodovias até 40km de distância devem se submeter ao licenciamento nos moldes da portaria, o que não está sendo respeitado no presente caso.


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