Contexto

BACEN precisa ter autonomia inclusive do mercado, dizem especialistas

Nos últimos dias, o Banco Central (Bacen) foi o centro dos debates da política brasileira. Isso porque o presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT) criticou decisões recentes do órgão, alegando que elas estariam prejudicando a economia do país. No meio dessa discussão, a autonomia da entidade voltou a ser discutida.

Os defensores da lei que garante a autonomia do Bacen afirmam que ela permite à instituição ficar livre de ingerência política de presidentes da República, permitindo teoricamente uma atuação técnica e focada no combate à inflação. Mas, na prática, não é bem assim segundo especialistas ouvidos pelo Vocativo.

Taxa Selic

Uma das queixas de Lula foi o fato de que o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central decidiu manter a taxa de juros em 13,75% – patamar em vigor desde agosto de 2022. O Vocativo já explicou a importância dessa taxa nesta matéria de junho de 2021. É bom conferir antes de continuar este texto.

Pra resumir: Selic elevada significa custo elevado do dinheiro. Com isso, as pessoas deixam de fazer financiamentos. Não fazendo financiamentos, as pessoas deixam de comprar. Se as pessoas não compram, as empresas deixam de produzir. Se as empresas não produzem, ela precisam reduzir seus tamanhos, o que significa “demitir”.

A justificativa do Copom para manter a taxa Selic em 13,75% ao ano é que as expectativas de inflação pioraram, principalmente por conta da perspectiva de gastos públicos mais elevados neste início de governo. No entanto, esse argumento é questionável.

Não há justificativa

De acordo com Cassiano Trovão, professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), a situação atual do país não justifica a medida adotada. “A justificativa dada pelo Bacen só faria sentido se o aumento de gastos provocasse um aumento da demanda agregada em um país com elevada utilização da capacidade produtiva instalada, o que levaria a uma pressão de demanda com capacidade de reação limitada por parte do setor produtivo. Mas não é isso que vemos no Brasil de hoje!”, afirma.

“Não existe nenhum motivo pro Banco Central condicionar a redução dos juros à estabilização/redução do endividamento público. É chantagem pra sabotar uma agenda de gastos mais agressiva pelo governo”, opina afirma Daniel Conceição, professor de Economia no IPPUR/UFRJ e presidente do Instituto de Finanças Funcionais para o Desenvolvimento (IFFD).

Cenário era pior em 2022

De acordo com Conceição, o desequilíbrio cambial produzido em 2022 foi muito mais inflacionário do que seria qualquer expansão fiscal capaz de dar conta dos principais compromissos de campanha de Lula. “O banco central controla completamente o juro referencial (a Selic), como provou na pandemia, e o juro referencial atrai pra si todos os demais juros da economia, então não há risco de descontrole dos juros, seja qual for o resultado fiscal do governo” afirma o economista.

“O mesmo Copom que hoje defende esse absurdo manteve a Selic em 2% a.a. no segundo semestre de 2020. Ali sim, a Selic estava irresponsavelmente muito baixa, porque estava bem abaixo do nível compatível com a estabilidade cambial (que depende da diferença entre o retorno esperado em aplicações em moedas estrangeiras e em reais e não dá situação fiscal), enquanto o governo praticava um déficit primário extraordinariamente elevado de cerca de 750 bilhões de reais”, lembra Conceição.

Não há explosão de dívida

Uma das justificativas mais comuns para o argumento contra gastos públicos é o aumento da dívida pública. Mas Cassiano Trovão explica que esse não é o caso. “Em 2022 o Brasil teve superávit,  a dívida pública bruta caiu, temos um grande volume de reservas internacionais e nossa dívida é em reais e não em dólares”, relembra Cassiano.

De acordo com o economista, o caos pregado pelo mercado e parte da mídia é exagerado. “Estamos muito longe do ‘abismo fiscal’ ou de uma ‘explosão da dívida’, termos que o pessoal adora. A verdade é que os juros elevados favorecem os rentistas em detrimento daqueles que querem realizar investimentos na expansão da capacidade produtiva e gerar empregos”, afirma.

Chantagem

Segundo Conceição, não existe nenhuma relação estável entre o tamanho da dívida pública e a inflação. “O que pressiona a inflação pela demanda é o tamanho do gasto, dos impostos, e seus efeitos multiplicadores. E pelo lado dos custos, situação de preços externos e o câmbio. Então não existe nenhum motivo pro banco central condicionar a redução dos juros à estabilização/redução do endividamento público. É chantagem pra sabotar uma agenda de gastos mais agressiva pelo governo”, alerta o economista.

Autonomia x escolha popular

Além da taxa de juros, a autonomia do Banco Central também foi alvo de debates dentro dessa polêmica. De acordo com Cassiano Trovão, essa autonomia deve funcionar também para o mercado financeiro. “Quem aplica no mercado financeiro é uma camada privilegiada da sociedade que se beneficia dos juros altos. Não são os verdadeiros investidores, que geram empregos. Os rentistas não podem ter a prerrogativa de definir qual será a política monetária do país independentemente da vontade do povo e da sua escolha política. O projeto da austeridade e do povo mais vulnerável fora do orçamento foi derrotado na urnas”, alerta.

Taxa de juros mais alta do mundo

Essa discussão reacendeu por causa da PEC da Transição que autorizou despesas de aproximadamente 2% do PIB. “Mas o pessoal esquece que a subida de 1 ponto percentual carregado por um ano equivale a um custo de 0,5 % do PIB de custo financeiro. A pouco tempo a taxa selic estava próximo de 2% e hoje próximo a 14%. Isso é insano”, lembra Cassiano. “Por causa dessa narrativa de descontrole fiscal, que só vale quando o gasto é com os mais pobres, o Brasil continua com a taxa de juros real mais alta do mundo” critica o economista.

Divergência política

O atrito entre o presidente Lula aconteceu diretamente com o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, indicado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Vale lembrar que Neto inclusive fazia parte de grupos de mensagem de apoio à releição do ex-chefe do executivo federal. A atual configuração de comando do Bacen é criticada por Daniel Conceição.

“O problema de um Bacen independente do executivo federal é que ele acaba sabotando o programa do governo, às vezes até por divergência política. Se houver alternância de poder, sempre teremos um presidente de Banco Central indicado por um governo adversário nos primeiros anos de um novo governo. Se este presidente se sentir mais alinhado ao governo que o indicou, terá sempre muita força pra sabotar o governo novo”, pondera.

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