Desde que o presidente Luís Inácio Lula da Silva assumiu seu terceiro mandato, a imprensa, o mercado financeiro e o Banco Central pressionam pela divulgação da chamada nova regra fiscal. Segundo esses setores, são necessárias regras para evitar gastos excessivos por parte do Estado, caso contrário, a economia quebrará.
Embora esse argumento seja bastante questionável, como o Vocativo mostrou aqui, o fato é que a nova regra, que substituirá o polêmico teto de gastos foi anunciado nesta quinta-feira (30/03/2023) pelo Ministério da Fazenda. O chamado novo arcabouço pretende estabelecer regras mais claras para os gastos públicos no Brasil, mantendo algum investimento público.
A mudança limitará o crescimento da despesa a 70% da variação da receita dos 12 meses anteriores, combinará um limite de despesa mais flexível que o teto de gastos com uma meta de resultado primário (resultado das contas públicas sem os juros da dívida pública). A mudança foi recebida com cautela e preocupação por dois especialistas ouvidos pelo Vocativo.
O que vai mudar
O projeto de lei complementar terá mecanismos de ajuste e alguma flexibilidade em caso de imprevistos na economia. As metas de resultado primário também obedecerão a uma banda, um intervalo. Dentro dessa trilha de 70% da variação da receita, haverá um limite superior e um piso para a oscilação da despesa.
Na prática, isso significa que em momentos de maior crescimento da economia, a despesa não poderá crescer mais de 2,5% ao ano acima da inflação. Em momentos de contração econômica, o gasto não poderá crescer menos que 0,6% ao ano acima da inflação.
O novo arcabouço fiscal também estabelece mecanismos para os próximos governos. Para impedir o descumprimento da rota de 70% de crescimento da receita, as novas regras trarão mecanismos de punição que desacelerará os gastos caso a trajetória de crescimento dos gastos não seja atendida.
Se o resultado primário ficar abaixo do limite mínimo da banda, o crescimento das despesas para o ano seguinte cai de 70% para 50% do crescimento da receita. Para não punir os investimentos (obras públicas e compra de equipamentos), o novo arcabouço prevê um piso para esse tipo de gasto e permite que, caso o superávit primário (economia do governo sem os juros da dívida pública) fique acima do teto da banda, o excedente será usado para obras públicas.
A equipe econômica esclareceu que o limite de 70% está baseado nas receitas passadas, não na estimativa de receitas futuras. Dessa forma, futuros governos ou o Congresso Nacional não poderão aumentar artificialmente as previsões de receitas para elevar as despesas.
Pontos positivos
Os dois especialistas ouvidos pelo Vocativo são unânimes em um ponto, que já havia sido abordado anteriormente no site: o atual teto de gastos era simplesmente inviável. Diante disso, uma mudança que torna as regras mais flexíveis tem a perspectiva de pelo menos ser cumprido, coisa que o anterior muitas vezes não foi.
“Do ponto de vista dos pontos fortes eu diria que ela tem um componente anticíclico importante na medida em que estipula um piso para gastos de investimento e para o crescimento da despesa! Que atua no sentido de expandir a demanda mesmo quando o setor privado não é capaz garantir um nível de demanda agregada compatível com o crescimento desejável do emprego e da renda”, explica Cassiano Trovão, professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Ainda segundo o economista, outra vantagem é que a regra se preocupa em reafirmar a importância dos investimentos em saúde e educação, elementos fundamentais para permitir algum desenvolvimento social e econômico uma vez que podem afetar diretamente a produtividade na economia como um todo. “Mais que isso, não amarra o poder discricionário do estado de gastar quando precisa e de fazer ajustes quando possível”, afirma.
Pontos negativos
Uma das principais queixas feitas contra a proposta é que ela mantém a mesma linha de austeridade fiscal de administrações passadas. Em um cenário de instabilidade política nacional e internacional (com a Guerra na Ucrânia), o novo modelo pode trazer sérios problemas para o novo governo.
“É inacreditável que mesmo depois da tragédia econômica produzida pelos erros de gestão macroeconômica do governo Dilma a partir de 2015, o terceiro governo Lula siga insistindo em confiar nas recomendações de política econômica dos porta-vozes do mercado financeiro”, protesta Daniel Conceição, professor de Economia no IPPUR/UFRJ e presidente do Instituto de Finanças Funcionais para o Desenvolvimento (IFFD).
“O novo arcabouço fiscal de Fernando Haddad é cheio de laçarotes, guizos e luzes coloridas que tentam dar a aparência de progressismo e compromisso com a justiça social, mas a verdade é que não passa de mais uma sabotagem legal contra a gestão macroeconômica eficientemente contracíclica e contra a construção de um Estado de bem-estar garantidor dos direitos fundamentais da população brasileira, até o limite das nossas potencialidades produtivas”, alerta.
Para Cassiano Trovão, apesar de ser uma alternativa melhor do que o Teto de Gastos, colocar em prática o novo arcabouço fiscal não será das tarefas mais fáceis. “O ponto fraco é que ele depende de uma repactuação da estrutura tributária que não é simples de ser alcançada, uma vez que a nova estrutura tributária pensada pelo governo coloca muitos agentes que hoje não pagam impostos para pagar””, afirma. No caso do Amazonas, por exemplo, ainda não se sabe o impacto da nova regra na Zona Franca de Manaus, por exemplo.
Risco político
O professor Daniel Conceição lembra que a derrocada da gestão da ex-presidente Dilma Rousseff começou justamente no momento em que ela cedeu à pressões por mais austeridade. “Foi essa a origem da nossa contração/estagnação econômica a partir 2015: o governo aceitou o diagnóstico liberal de que precisava arrumar as suas contas, promoveu um baita ajuste fiscal num momento em que as exportações também caíam, e a economia entrou em recessão por falta de demanda”, lembra.
“Quando o governo tira tanta demanda da economia como tirou a partir de 2015, num momento de queda também nas exportações, os empresários mandam trabalhadores embora e reduzem seus investimentos. Isso cria uma espiral recessiva: cada trabalhador que perde o seu emprego é um trabalhador que deixa de consumir, e isso reduz ainda mais o incentivo do capitalista contratar e investir”, alerta o economista.
Ainda segundo Conceição, esse modelo já deveria ter deixado de existir a partir do exemplo da pandemia da Covid-19. “O mais triste disso tudo é que 2020 deveria ter derrubado de vez o mito de que o governo brasileiro pode ficar sem dinheiro e precisa reduzir ou estabilizar a sua dívida. Se isso fosse verdade, não teria sido possível que o governo realizasse um déficit primário de 750 bilhões de reais para combater a pandemia”, avalia.
“Se os juros administrados pelo Banco Central realmente precisassem aumentar sempre que a dívida pública crescesse, a Selic não poderia ter sido irresponsavelmente reduzida a 2% a.a. ao mesmo tempo em que o governo batia todos os recordes de resultados fiscais deficitários”, pondera o professor.