Uma das funções Constitucionais do Poder Legislativo é a fiscalização das ações do Poder Executivo, seja presidente, governador ou prefeito. O parlamentar municipal funciona (ou ao menos deveria) como parte importante de um mecanismo de fiscalização e controle da aplicação dos recursos públicos em cada cidade.
O problema é que a legislatura atual da Câmara Municipal de Manaus (CMM), eleita nas eleições de 2020, passa longe desse dever constitucional. Levantamento feito pelo Vocativo mostra que entre os anos de 2023 e 2024, a base do prefeito na casa barrou nada menos do que 27 pedidos de apuração importantes contra atos suspeitos da prefeitura, entre contratos milionários, metas administrativas não cumpridas e atuação polêmica de secretários municipais.
Poucos vereadores de oposição
O controle dos recursos públicos é uma atividade crucial para assegurar que a administração municipal atenda às necessidades da população. Conforme estabelecido pela Constituição Federal de 1988, a fiscalização do município é exercida pelo Poder Legislativo municipal por meio do controle externo.
Os vereadores, como membros desse poder, têm a responsabilidade de verificar se a aplicação dos recursos públicos está em conformidade com os princípios e normas estabelecidos. O problema é que, em Manaus, poucos têm, de fato, assumido esse papel nos últimos anos.
Até 2023, apenas dois vereadores, Amom Mandel (Cidadania, que em 2022 se elegeu deputado federal) e Rodrigo Guedes (atualmente no PP) se colocaram oficialmente como oposição dentro da Câmara Municipal de Manaus. De 2023 em diante, porém, outros parlamentares passaram a cobrar de forma mais incisiva a gestão do prefeito David Almeida (Avante).
De 2023 até o momento, Guedes foi o que mais apresentou requerimentos pedindo informações ou a convocação de figuras ligadas à prefeitura para esclarecimentos: foram 16 pedidos no total, todos negados. Enquanto esteve como vereador, Mandel teve 4 pedidos de esclarecimento negados.
Em segundo lugar aparece William Alemão (Cidadania), com 7 pedidos, também negados. Capitão Carpê Andrade (PL), embora se declare como oposição, não consta nenhum requerimento no Sistema de Apoio ao Processo Legislativo (SAPL), base de dados de atuação dos vereadores no site da CMM. A assessoria do parlamentar não respondeu os contatos do site ao longo da semana.
Atualmente, a base aliada do prefeito é composta pelos vereadores Alonso Oliveira (Avante), Kennedy Marques (Mobiliza), Jander Lobato (PSD), David Reis (Avante), Eduardo Alfaia (Mobiliza), Dione Carvalho (Agir), Prof. Samuel (PDT), Mitoso (MDB), Sassá da Const. Civil (PT), Joelson Silva (Patriota), Wallace Oliveira (DC), Raulzinho (PSDB), Elan Alencar (DC), Fransuá (PSD), Eduardo Assis (PSD), Isaac Tayah (PSD), Roberto Sabino (MDB), Yomara Lins (Republicanos), Gilmar Nascimento (Avante) e Daniel Vasconcelos (Podemos).
Casos icônicos
Ao longo dos últimos quatro anos, não faltaram situações que pediram um olhar mais rigoroso do poder público. O caso mais recente aconteceu no começo do mês, quando a base do prefeito na CMM barrou a convocação do secretário titular da Secretaria Municipal de Limpeza Pública (Semulsp), Sabá Reis a respeito de denúncia sobre contrato para a instalação de um crematório de animais no valor de R$ 15 milhões. O valor foi considerado exorbitante para um serviço supérfluo, mas, até o momento, não se sabe nada mais a respeito.
Aliás, não foi a primeira vez, no entanto, que Sabá Reis foi alvo de graves denúncias. Em junho de 2023, a Polícia Federal realizou a operação Dente de Marfim, e teve como alvos justamente o titular da Semulsp, além do seu subsecretário, Altervi de Souza Moreira, além do empresário Silas de Queiroz Pedrosa. Todos foram apontados como membros do ‘núcleo político’ da investigação de um esquema milionário de fraude. Nem Reis, nem Altervi foram sequer convocados pra prestar esclarecimentos, uma vez que a base do prefeito David Almeida vetou.
A ação teve como origem um relatório financeiro da Receita Federal, que apontou indícios de irregularidades ligadas a um escritório de advocacia e contratações públicas firmados entre a empresa Mamute Conservação e a Semulsp desde 2016. Até o momento, a Câmara Municipal de Manaus não tomou qualquer atitude para fiscalizar a atuação do polêmico secretário, que já comandou a pasta em outras administrações.
Outro episódio nebuloso da gestão David Almeida em outra secretaria segue sem qualquer resposta. Em março deste ano, um homem não identificado apareceu em vídeo recebendo um saco de dinheiro na Secretaria Municipal de Comunicação (Semcom), que fica localizada no prédio da Prefeitura de Manaus, no bairro da Compensa, zona Oeste da Capital.
No vídeo, o homem se identifica como motorista de Elson Santos, dono do portal de notícias O Abutre. Ainda não há explicações plausíveis sobre o ocorrido. Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) chegou a ser instaurada em abril, mas até o momento os trabalhos sequer começaram. O titular da Semcom, Israel Conte, chegou a ir até o plenário, mas se reuniu com a base do prefeito antes de falar e só foi questionado pela oposição.
Requerimentos negados
Dentre os autores de pedidos de explicação, William Alemão, por exemplo, teve rejeitados requerimentos pedindo informações e cópias do contrato firmado entre a empresa PL. de A. Sodré e a Prefeitura de Manaus. Também foram negadas informações e dados a respeito do cumprimento das metas de implantação da rede de saneamento básico pela Águas de Manaus, conforme previsto na lei nº 11.445/2007 e no Controle de Concessão, até o ano de 2023.
A base aliada do prefeito barrou ainda requerimentos sobre pregões da Secretaria Municipal de Agricultura, Abastecimento, Centro e Comércio Informal (Semacc), além de pedidos de explicação de documentos referentes ao uso para os espaços públicos localizados no Mirante Lúcia Almeida. No evento de inauguração do local, os usuários reclamaram de preços abusivos cobrados nesses espaços.
O vereador Rodrigo Guedes (Progressistas), por sua vez, apresentou uma série de requerimentos pedindo esclarecimentos sobre diversas ações da Prefeitura de Manaus. No entanto, todos os pedidos foram rejeitados e arquivados.
Entre os requerimentos arquivados, destacam-se pedidos de informações detalhadas sobre a convocação dos aprovados nos concursos da Secretaria Municipal de Saúde (SEMSA) realizados em 2021. Guedes também solicitou a convocação do Secretário Municipal de Comunicação, Israel Conte de Lima, sobre o incidente envolvendo a entrega de dinheiro vivo na sede da Semcom, ocorrido em março deste ano.
Outro pedido rejeitado envolvia a convocação do Secretário Municipal de Infraestrutura, Renato Frota Magalhães, para prestar esclarecimentos sobre o programa de pavimentação urbana “Asfalta Manaus”. Além disso, também foi barrada apuração sobre o cancelamento da participação do Executivo Municipal no Casamento Coletivo LGBTQIAPN+, promovido pela CAAM – OAB/AM.
“A Câmara de Manaus não vem cumprindo um dos princípios mais importantes: a fiscalização. Uma maioria próxima ao prefeito impede a aprovação de requerimentos de esclarecimento que objetivam a fiscalização dos atos da Prefeitura”
Carlos Santiago, sociólogo, Cientista Político e Advogado
A Câmara Municipal também se negou a obter mais transparência quanto aos cachês pagos aos artistas do Festival Sou Manaus Passo a Paço 2023, incluindo o DJ David Guetta, questionando se os valores seriam custeados com verbas públicas. Denúncias de rotina exaustiva de trabalho imposta aos funcionários da empresa PRI Apoio Administrativo e Operacional Ltda, contratada pela Secretaria Municipal de Educação (SEMED) também passaram em branco.
Falta apuração
Vale explicar que nem sempre os pedidos de apuração ou esclarecimentos se mostram realmente necessários. Muitos dos dados solicitados podem ser acessados via Lei de Acesso à Informação ou no Portal da Transparência. “Às vezes, esses pedidos visam apenas dar destaque a quem os fez. Muitas vezes, vereadores fazem pedidos apenas para aparecer na mídia, quando poderiam obter as informações através de sites como o Portal da Transparência”, explica Helso Ribeiro, cientista político, professor e advogado.
O problema é quando esse conteúdo não está disponível ou é negado pelo executivo municipal. Aí deveria entrar em cena o poder legislativo, o que não está acontecendo no caso de Manaus. “A Câmara de Manaus não vem cumprindo um dos princípios mais importantes: a fiscalização. Uma maioria próxima ao prefeito impede a aprovação de requerimentos de esclarecimento que objetivam a fiscalização dos atos da Prefeitura”, afirma Carlos Santiago, sociólogo, Cientista Político e Advogado.
“Temos um Poder Legislativo que custa muito caro aos contribuintes, com bons subsídios pagos aos vereadores e vereadoras, além de verbas indenizatórias e de gabinete para os seus trabalhos. Mesmo assim, não há sensibilidade para fiscalizar os atos do Poder Executivo, citando inclusive um péssimo exemplo”, lamenta Santiago.
“A atual composição da Câmara Municipal e a eleição do presidente ocorreram em oposição ao prefeito, mas não de forma ideológica, e sim por questões específicas. Muitos vereadores continuam colaborando e não abordando assuntos que venham da liderança maior do município, que é o executivo, o prefeito da capital”
Helso Ribeiro, cientista político, professor e advogado
Apêndice da prefeitura
Apesar de ser um problema crônico de Manaus, o alinhamento entre prefeituras e Câmaras não é uma novidade. “Outra questão comum no relacionamento das 5600 câmaras municipais do Brasil é que vereadores acabam sendo amordaçados pelas lideranças do prefeito. Assim, acabam não fiscalizando adequadamente. É muito comum haver um líder do prefeito na Câmara, o que é estranho, pois os vereadores foram eleitos para fiscalizar, não para liderar o prefeito”, avalia Ribeiro.
“O caminho para esclarecer e investigar questões de relevância pública envolveria a ação do Ministério Públicoa e de agentes da sociedade civil pressionando diretamente a Câmara e medidas de qualificação do trabalho dos legisladores, que dispõem de verbas para contratar assessores habilitados a suprir suas próprias limitações”
Marcelo Seráfico, sociólogo, professor do Departamento de Ciências Sociais da UFAM
Na maioria das prefeituras do Brasil, o prefeito acaba tendo um apêndice na Câmara, usando suas lideranças para barrar questões desconfortáveis e impulsionar o que lhe interessa. “A atual composição da Câmara Municipal e a eleição do presidente ocorreram em oposição ao prefeito, mas não de forma ideológica, e sim por questões específicas. Muitos vereadores continuam colaborando e não abordando assuntos que venham da liderança maior do município, que é o executivo, o prefeito da capital”, critica Helso Ribeiro.
MP e Sociedade Civil devem atuar
Nesse caso, cabe aos demais órgãos de fiscalização atuarem de forma mais contundente. “O caminho para esclarecer e investigar questões de relevância pública envolveria a ação do Ministério Públicoa e de agentes da sociedade civil pressionando diretamente a Câmara e medidas de qualificação do trabalho dos legisladores, que dispõem de verbas para contratar assessores habilitados a suprir suas próprias limitações”, afirma Marcelo Seráfico, sociólogo, professor do Departamento de Ciências Sociais da UFAM.
“Em 2024, haverá eleição para a escolha dos 41 vereadores de Manaus. É o momento em que a sociedade, o eleitorado, tem o dever de votar com responsabilidade em representantes independentes e que queiram cumprir as atribuições constitucionais que estão esquecidas pela Câmara de Vereadores”, avalia Carlos Santiago.
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