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Violência doméstica assola São Gabriel da Cachoeira

O município de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, na região do Alto Rio Negro, possui a maior concentração de indígenas do Brasil. Um estudo mostra que entre os anos de 2010 e 2019, a cidade viu nada menos do que 40% da sua população ser alvo de casos de violência doméstica. Um detalhe curioso: desses casos, 60% foram protagonizadas por militares.

O relatório “Tecendo a vida sob braços fortes – Caracterização da violência contra mulheres na cidade de São Gabriel da Cachoeira/AM” foi lançado no dia 13 de setembro de 2023, durante a III Marcha das Mulheres Indígenas em Brasília. O levantamento se baseia em denúncias feitas à polícia local e vem sendo realizado desde 2012 pelo Observatório da Violência de Gênero no Amazonas da Universidade Federal do Amazonas (OVGAM) e foi coordenado pela Dra. Flávia Melo (IFCHS/PPGAS/DAN).

A maioria dos casos (21,8%) de violência doméstica na cidade acontece à noite. Cerca de 3,8% dos casos sofreram também agressões sexuais, 17,7% sofreram violência psicológica e ainda 23,3% foram vítimas de violência patrimonial. Das vítimas com idade informada, 54,4% (1.238) possuem entre 19 e 40 anos. Dos registros, 11,8% (269) são de vítimas com idade igual ou inferior a 18 anos. Dos casos,14,5% (331) dos registros não tiveram a informação da idade da vítima.

Perfil dos agressores

O perfil dos agressores detectado na pesquisa chama atenção por uma série de fatores. Há uma distribuição etária entre autores que abrange desde a adolescência até a vida adulta. Além disso, a maioria deles vem do Maranhão e Rio Grande do Sul. Outro detalhe: 61% deles são vinculados a instituições militarizadas nos registros que informam ocupação. Isso envolve tanto polícias como forças Armadas, mas também guardas municipais e outras organizações não públicas, organizações privadas como segurança privada.

Vale lembrar que São Gabriel da Cachoeira tem além de 23 etnias diferentes, a presença secular de não indígenas que chegaram àquele território por processos coloniais, como a presença missionária e militar. “Entender as dinâmicas locais das violências que afetam as mulheres na cidade requer, portanto, entender como as relações entre indígenas, e entre indígenas e não indígenas são construídas. Mas não de uma perspectiva interpessoal, e sim de uma perspectiva histórica, das relações de poder que envolvem esses diferentes grupos”, explica Flávia Melo, antropóloga e uma das responsáveis pelo estudo.

Ainda segundo a pesquisadora, esse dado envolvendo agentes de segurança precisa ser cuidadosamente observado pelo Estado. “Precisamos olhar para a relação, para relações de violência que atravessam tanto relações interétnicas, relações entre indígenas e não indígenas, como relações de mulheres com homens de formação militar de formação militarizada. Existe uma parcela significativa desses homens que não só têm formação militarizada, mas que também têm porte de arma regular” alertou Flávia.

Para a antropóloga, é necessária uma política apropriada de prevenção não apenas onde os números de feminicídio são mais preocupantes. “Nós sabemos que existe uma relação de muita proximidade entre a prevalência de violências domésticas, da violência doméstica e familiar com crimes letais, como os feminicídios e as tentativas de feminicídio”, avalia.

O relatório final do estudo afirma que os dados indicam a necessidade de investigar melhor as possíveis correlações entre o perfil de agressores e de vítimas e a presença de instituições armadas e militares na cidade. Aliás, não seria má ideia ir além disso. “Se isso se repete em outros lugares, principalmente em regiões de fronteira em que a presença militar é bastante numerosa, é preciso criar medidas de mitigação dessas violências”, sugere.

Apenas a ponta do iceberg

Embora o estudo traga dados preocupantes, a realidade deve ser ainda pior. “Existe uma lacuna gigantesca de informações, principalmente de vítimas, mas também de autores de pessoas não identificadas nos registros como responsáveis pela autoria dos crimes”, lamentou Flávia Melo.

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