As redes sociais dos amazonenses foram tomadas por duas polêmicas essa semana. A primeira envolvendo uma capivara (isso mesmo que você leu) “adotada” por um influenciador digital e que foi alvo de ação do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (IBAMA). A outra, envolve a Universidade de São Paulo (USP) que teve a “ousadia” de criar um núcleo de estudos sobre a Amazônia sem “pedir a autorização” (sim, foi isso mesmo que você leu) de quem mora aqui.
Em ambos os casos, a busca desenfreada por likes e engajamento prejudicou duas pautas importantíssimas: a proteção da fauna e a representatividade na ciência brasileira. E mostram que mesmo entre a autoproclamada ala progressista da internet, há grupos que demonstram comportamentos que lembram muito os bolsonaristas em tempos de eleição.
A capivara Filó
No último dia 18 de abril, o Ibama multou em R$ 17 mil o estudante Agenor Tupinambá, que ficou conhecido por gravar vídeos com a capivara Filó, no município de Autazes (a 113 km de Manaus). O influenciador foi intimado pelo instituto sob a denúncia de maltratar os animais do campo.
Desde então, diversos políticos do estado, especialmente a deputada estadual Joana Darc (União Brasil) passaram a encampar uma autêntica batalha midiática de ataques contra a instituição, defendendo que o estudante mantivesse o contato com o animal, o que representa uma infração ao meio ambiente prevista em lei.
De acordo com o Ibama, animais silvestres devem ser mantidos em vida livre, onde prestam serviços ambientais de importância incalculável para a manutenção de um meio ambiente equilibrado. O órgão afirmou em nota ainda que o jovem foi multado pela morte da preguiça-real que estava em sua posse.
O ponto em questão é como uma parte significativa das redes sociais passaram a defender uma infração ambiental pela simples manipulação de vídeos emotivos em que Agenor aparece com o animal. Em poucos dias, o influenciador arrecadou mais de R$ 80 mil para pagar a multa, fazendo ele e a deputada serem reconhecidos no país inteiro.
O que os defensores de Agenor e Joana se esquecem é que essa prática pode se tornar recorrente em toda a Amazônia, fazendo com que mais e mais pessoas passem a buscar animais silvestres para conseguir engajamento nas redes, o que representa um risco para a fauna na região e todos nós, uma vez que o contato entre espécies oferece o perigo de salto de vírus e outros microorganismos que podem causar doenças.
Isso sem falar no perigo que representam esses ataques a servidores públicos e a própria existência do Ibama. Tanto que rapidamente a pauta foi cooptada por bolsonaristas que defendem abertamente o fim de qualquer fiscalização ambiental por serem favoráveis à exploração predatória da natureza.
O caso USP e a Amazônia
A outra polêmica da semana também serve como exemplo de como a histeria coletiva e a busca desenfreada por engajamento pode deturpar completamente uma pauta importante. No final deste texto, todos vão entender como as duas estão intimamente ligadas.
Sob a coordenação do professor Paulo Artaxo, a USP lançou o Centro de Estudos da Amazônia Sustentável (Ceas), que tem como objetivo “a produção, integração e disseminação da ciência, por meio de atividades acadêmicas e científicas inter e transdisciplinares relacionadas ao ensino, à pesquisa e à extensão, para o desenvolvimento sustentável da região”.
Ao final do texto, o próprio coordenador – que frequentemente visita a Amazônia e desenvolve atividades na região – afirma categoricamente que tem como meta a colaboração e parceria com pesquisadores que trabalham em instituições amazônicas.
Eis que diversas figuras nas redes sociais – SEM LER O TEXTO – passaram a atacar a postagem, afirmando que a universidade tinha como intenção se colocar como “colonizadora e salvadora da região” por não ter “pedido autorização” ou citado nominalmente instituições de pesquisa situadas na Amazônia. A universidade paulista também não poderia estudar a Amazônia “porque não vive aqui”. Dentre outros argumentos risíveis.
O que se seguiu a isso foi um show de xingamentos e acusações que iam desde bairrismo, elitismo até racismo tanto contra a USP, acusada de se autoproclamar “salvadora” da nossa região (coisa que não fez) quanto quem entendeu o que foi dito no texto. O que também gerou uma onda de respostas que iam no mesmo baixo nível de internautas do sudeste. Enfim, um espetáculo deprimente.
Pra começar não, nem a USP nem qualquer instituição brasileira precisa de autorização pra trabalhar sobre ou na Amazônia. Muito menos nos incluir nos seus trabalhos. Da mesma forma como a UFAM, a UEA, o INPA e a UFPA não precisam da autorização ou fazer parceria com ninguém pra pesquisar sobre biologia marinha ou biomas brasileiros como o cerrado e a caatinga. Embora sejam universidades e instituições de pesquisa públicas, cada um luta por seus interesses e seus espaços no cenário científico e é assim que deve ser.
Claro que é RECOMENDÁVEL, LOUVÁVEL e de bom tom trabalhar em parceria com as instituições locais. E nós, enquanto isso, devemos sempre cobrar espaço na mesa de debates e discussões sobre a Amazônia porque se trata da nossa casa. E porque temos expertise a respeito. Isso não se discute. Mas daí a criar um palco de baixaria de quinta série ou lacração barata vai uma enorme diferença.
Outra coisa: não se pode entrar em um debate sério querendo ser levado a sério sem nem ao menos LER O TEXTO do qual você está reclamando. Diversos internautas, desde pesquisadores, professores e influenciadores passaram uma semana criticando e atacando com argumentos que serviam pra refutar algo QUE NÃO HAVIA SIDO DITO no texto da USP. E isso é sério.
O que ambos os casos têm em comum
Tanto o caso da capivara Filó quanto da USP mostram que a busca por engajamento está conseguindo cegar mesmo pessoas que defendem causas justas e urgentes. É lógico que a proteção ambiental é necessária. É lógico que a ciência na Amazônia precisa ter o seu espaço no cenário nacional. Mas de que forma se defende isso?
A relação entre um animal e seu cuidador é sempre comovente, mas desde que não represente um risco e uma infração ambiental. Se representa, não interessa se você considera a multa injusta ou acha incoerente o Ibama nem sempre multar desmatadores. Um erro não justifica o outro. Respeite a lei e os servidores públicos.
Sim, há uma cultura elitista e excludente no Sul-Sudeste brasileiro que trata os amazônidas como um povo sem conhecimento. Mas isso não te autoriza a reagir de maneira irracional e agressiva a qualquer iniciativa vinda dessas regiões como sendo parte dessa cultura. É uma questão de civilidade e inteligência, já que essas iniciativas representam oportunidades para pesquisadores locais.
É preciso tomar muito cuidado com a forma como você defende suas causas. Não adianta reclamar das big techs ou do Elon Musk se a sua sede por autoafirmação e engajamento ajuda a tornar o ambiente virtual insuportável. Também não adianta reclamar do seu tio bolsonarista que compartilha qualquer coisa no Whatsapp sem ler se você faz o mesmo.