Amazônia

Passei uma tarde na manifestação golpista de Manaus

Com cuidado para não levantar suspeitas de que eu era um jornalista, passei uma tarde em meio aos bolsonaristas acampados no CMA

Mais do que uma reportagem descritiva, esse será um relato pessoal. Algumas histórias no jornalismo são entendidas melhor dessa forma. E por se tratar da análise sobre gente, melhor que ela chegue até você como uma conversa. Nesta quinta-feira (10/11/2022), passei a tarde infiltrado na manifestação bolsonarista que está acampada desde 02 de novembro em frente ao Comando Militar da Amazônia (CMA), três dias depois do segundo turno das eleições deste ano.

Aqui preciso pedir a sua compreensão porque essa matéria foi concebida de maneira diferente do habitual. Muitos colegas estão sendo alvo de ameaças e intimidação ao tentar cobrir o movimento de forma “convencional”. Por estar sozinho e temendo agressões e represálias, resolvi colocar uma roupa esportiva para simular ser frequentador da academia no shopping em frente ao shopping onde acontece o acampamento. E saí como um curioso transeunte conversando com os presentes. A ideia era tentar observar o movimento de dentro, ouvindo o que as pessoas falavam.

Rotina dos manifestantes

Uma moradora de um dos prédios nos arredores (que não será identificada por questões de segurança) descreveu a rotina do local desde o início do acampamento. Pela manhã são grupos menores, concentrados na porta do comando. No princípio, o som ficava ligado em altos decibéis por 24 horas alternando marchas militares, hinos da bandeira, da independência e, é claro, o hino nacional. Com a péssima repercussão e reclamação, isso fica restrito atualmente ao final do dia e início da noite.

Em horário de expediente, muito daquele volume de pessoas são trabalhadores informais atraídos justamente pela demanda. Aproveitando a proximidade da Copa do Mundo, por exemplo, Roberto* (nome fictício, 43) levou a esposa e os filhos para vender camisas da seleção brasileira e bandeirinhas do Brasil. Ele garantiu não ter tido apoio de nenhum empresário para ir até o local.

Vinte e uma barracas foram montadas no local. Há pelo menos doze banheiros químicos à disposição dos manifestante

O trânsito, embora ainda engarrafado, não é mais o caos dos primeiros dias. Com a reclamação dos vizinhos, a situação mudou. “Eles tão preocupados com a repercussão negativa. Ontem estavam anunciando carros mal estacionados”, disse a moradora. Segundo ela, ao final do expediente, o grosso dos manifestantes aparece, no momento em que o som aumenta.

Outro ponto que chamou atenção foi a quantidade de crianças e Pessoas Com Deficiência (PCD) no local. No momento da visita do site, haviam pelo menos dez crianças e seis PCD’s nos arredores do protesto. Alguns foram abordados, mas não quiseram falar. O mais curioso é que até colchões e barracas pequenas foram trazidos ao local como se quisessem que eles ficassem. O que reforça a tese de que a presença deles serve também pra inibir ações da PM. O que não parece ser necessário como veremos mais à frente.

Quem financia?

Muito se pergunta sobre o caráter dessas manifestações. Afinal, por serem assumidamente golpistas – já que pedem o uso da força (letal, se preciso) contra do voto popular nas urnas – elas seriam orquestradas por políticos com interesse direto na manutenção de Jair Bolsonaro na presidência da República? Ou elas estariam ali espontaneamente? Sim e sim.

Algumas informações colhidas pelo Vocativo na manifestação ainda precisam de respostas. Mas, como descobrimos no dia seguinte, existem empresários dando apoio logístico para a manifestação, inclusive com doação de alimentos. No local, vendedores e manifestantes também insinuaram apoio de lojas de material de pesca na doação das barracas. Nenhum dos entrevistados, por sua vez, soube indicar nenhum estabelecimento em especial.

Também foi possível notar carros luxuosos como Land Rovers, Trackers e outras marcas de SUV estacionadas no local carregando alimentos como bolachas, pão, sanduíche, café e água na carroceria. Isso sem contar nos incentivos de políticos bolsonaristas locais para a manifestação. Resta ainda saber se esse incentivo é apenas verbal ou financeiro também.

Voluntários

Apesar disso, também é possível destacar o caráter orgânico dessa ação. Muitas pessoas estão ali por conta própria. Sem ajuda alguma. João Roberto dos Santos (56), a esposa e a filha subiam a passarela no momento em que eu fotografava a manifestação. Todos garantiram que não faziam parte de nenhuma caravana ou comboio preparado por organizadores. Todos esperaram apenas a filha sair do trabalho para levá-los.

Outras três famílias também afirmaram estar ali por conta própria. Questionada sobre a eleição, um dos manifestantes disse: “Tudo roubado. Não quero esse ladrão [se referindo ao presidente Lula] de volta ao poder nem a pau”, disse um deles. Em alguns momentos foi possível notar manifestantes chegando de ônibus com camisas da seleção brasileira.

Conivência do poder público

Há uma nítida conivência do poder público com infrações de trânsito. Uma parte do acostamento passou a servir como lixeira pública (foto abaixo) para os vendedores ambulantes e famílias que permanecem no local. Questionado a respeito, o Instituto Municipal de Mobilidade Urbana (IMMU) não respondeu aos questionamentos do site sobre quais medidas estão sendo tomadas a respeito.

Vale lembrar que arremessar lixo em uma via é considerado infração média pelo Código de Trânsito Brasileiro (CTB), que prevê uma multa de R$ 130,16 e perda de quatro pontos na Carteira Nacional de Habilitação (CNH). Dependendo do volume de dejetos abandonados, o motorista pode responder a processo por crime ambiental.

Em dado momento que estou circulando pelo local, chega uma viatura da Polícia Militar do Amazonas e estaciona exatamente em frente aos manifestantes. Ao ver a cena, comecei a me aproximar. Por um momento, pensei em abordar os policiais e fazer perguntas, mas uma imagem me fez mudar de ideia.

A viatura da PM parou no local para receber quentinhas de um dos manifestantes, que atravessou a rua (fora de qualquer faixa de pedestres ou passarela) e levou até eles o alimento. Não pareceu boa ideia abordar de forma inquisitória os policiais, que provavelmente haviam marcado com alguém para receber a “gentileza”. Logo em seguida, o veículo foi embora.

Viatura da PM recebeu quentinhas de manifestantes que pediam golpe de Estado

Questionados a respeito, nem o comando da Corporação nem a Secretaria de Segurança Pública do Amazonas (SPP-AM) ou mesmo a Secretaria de Estado da Comunicação (Secom) se manifestaram até o fechamento desta matéria sobre a postura dos policiais.

MPF afirma estar investigando

Em nota enviada ao Vocativo, o Ministério Público Federal no Amazonas (MPF-AM) afirmou que está apurando os protestos. O órgão disse ainda que já notificou as autoridades policiais para agirem em caso de manifestações que incitem a ruptura do estado democrático de direito. O que ainda não foi feito até o fechamento desta matéria, diga-se.

O MPF afirmou ainda que “continuará acompanhando o andamento dos acontecimentos e seus desdobramentos sob as óticas cível e criminal para eventuais medidas cabíveis”. As autoridades informaram ainda que, por conta do caso estar tramitando em sigilo, não é possível repassar outras informações nem conceder entrevista a respeito do assunto.

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