O que era lobby ganhou traços de verdadeira obsessão. Usando a estiagem e as queimadas como pretexto, políticos e veículos de comunicação do Amazonas passaram a pressionar diariamente o governo federal pela pavimentação da BR-319. O frágil argumento usado é de que a estrada precisa ser reconstruída porque “o Amazonas está isolado do resto do país”. De tão ostensiva, essa campanha levanta suspeitas e precisa ser investigada.
A insanidade foi tamanha que a classe política do estado conseguiu um feito: chamou representantes do governo federal para virem até Manaus ajudarem no combate às queimadas e estiagem extrema. Mas ao invés disso, defenderam com unhas e dentes uma obra que tem como principal consequência contribuir para eventos climáticos extremos, como queimadas e estiagem extrema. É surreal.
A obra é, dentro do cenário brasileiro, praticamente inviável. A ministra Marina Silva, alvo preferencial das cobranças, inclusive com comportamento machista de vários parlamentares, já explicou o óbvio: para ser reconstruída, a BR-319 precisa ter viabilidade financeira, social e ambiental. E nos três quesitos ela falha clamorosamente.
Do ponto de vista logístico, o argumento de isolamento não se sustenta. Afinal, aqui funciona o Polo Industrial de Manaus, que abastece o mercado brasileiro há mais de 50 anos, com várias estiagens recordes ao longo do período. Somos uma cidade que situou uma Copa do Mundo e partidas de futebol das Olimpíadas de 2016, há nove e sete anos respectivamente, sem qualquer problema logístico. Estivéssemos isolados, esse fluxo de cargas, passageiros e turistas não seria permitido.
Do ponto de vista social, a BR-319 traria consequências para os indígenas Katawixi, que vivem em isolamento voluntário na Terra Indígena (TI) Jacareúba-Katawixi, localizada na área de influência da rodovia. Se a estrada for pavimentada, haverá aumento de ramais na região próxima à TI, deixando os indígenas vulneráveis a invasões de terras. Essas invasões também colocam em risco a atividade econômica de comunidades tradicionais, extrativistas e ribeirinhas.
E do ponto de vista ambiental, a rodovia, mesmo antes de ser pavimentada, já traz graves consequências para a floresta. A região também bateu recordes de desmatamento e focos de calor, considerando a série histórica de 2010 a 2022 analisada pelo Observatório BR-319 (OBR-319), que monitora 13 municípios, entre Amazonas e Rondônia, situados na área de influência da rodovia. Isso antes de ser reconstruída. Estimativas dão conta que esse número pode quadruplicar caso a pavimentação saia do papel.
Se logística, social e ambientalmente a obra não se mostra interessante, cabe ao poder público estudar cuidadosamente sim se deve ou não gastar recursos com ela. Isso é o mínimo que se espera da administração federal. E se a resposta for não, azar de quem não concorda. Então os trâmites do projeto precisam continuar.
Resta então, aos defensores da ideia, a pressão e a intimidação vistas na última semana. Mas fica a pergunta: se a obra pode não ser do interesse do contribuinte, o que motiva essa obsessão dos políticos amazonenses? O que os motiva a aprovar moção de repúdio, apontar o dedo na cara e dar ataques histéricos em plenários cobrando Marina Silva?
Isso precisa ser investigado pelos órgãos competentes. Até porque diversos veículos de comunicação do Amazonas compraram a ideia e dão apenas a versão favorável ao projeto, inclusive recorrendo aos mesmos argumentos descritos aqui. Na coletiva de imprensa da visita da comitiva do vice-presidente Geraldo Alckmin, ao invés de perguntas sobre a crise climática, apenas questionamentos sobre a BR-319. Na hipótese de que tenha sido usado aparelho do Estado, isso é grave.
Pode parecer uma questão meramente de política local, mas não é. A Amazônia é mais do que uma floresta. Ela é também um colossal estoque de carbono. O Amazonas, ao passar de um dos estados mais preservados para um destruidor em larga escala, contribui de maneira decisiva para o aquecimento do planeta. E se essa obra for liberada de maneira indiscriminada e os estudos de impacto ambiental se confirmarem, o cenário do futuro da região será o pior possível.
Seja quais forem as motivações desses políticos, isso precisa ser esclarecido. Essas pressões devem parar imediatamente para que a famigerada obra tenha seus estudos técnicos concluídos. O interesse público precisa prevalecer. Lembrando que público não significa apenas quem apoia o projeto, mas todos que são impactados e sofrerão por causa dele.
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