O mesmo Estado que quer laquear mulheres é aquele que se recusa a fornecer educação sexual e políticas de planejamento familiar a elas. Ficam as perguntas: a ação é pelo bem estar dos pobres ou apenas para erradicá-los? Por que não se exige a vasectomia para os pais de crianças abandonadas?
Uma moradora de rua da cidade de Mococa, na grande São Paulo, foi submetida a uma cirurgia de laqueadura (que impede a mulher de ter filhos) após o nascimento do seu oitavo filho por ordem de um juiz e um promotor público do Estado. A notícia foi revelada pelo jornal Folha de São Paulo.
A justificativa foi que a mulher, além de já ter 8 filhos, era dependente química, estava presa por tráfico de drogas (ela foi solta na última quarta-feira, 21) e não teria condições de ter mais filhos. Além disso, a promotor e juiz afirmaram que ela assinou um termo concordando com o procedimento. No entanto, em entrevista ao Fantástico, da Rede Globo, ela negou ter dado autorização e disse que assinou os papéis coagida e que mas mal sabe ler. E que também foi separada à força da sua filha.
O caso levantou debates se a ação do poder público estaria correta tendo em vista a situação tanto da mãe quanto das crianças, que vivem em situação precária. Por outro lado, a forma como o procedimento foi feito, contra a vontade da mãe, gerou revolta de entidades que defendem os direitos da mulher, que entenderam como abusiva a ação dos dois representantes do judiciário.
Além de escabroso, esse acontecimento é emblemático.
Vamos estabelecer uma coisa antes de tudo: o corpo de qualquer ser humano pertence a ele, somente a ele. Se você quer fazer qualquer coisa no corpo deste ser humano, é preciso duas condições básicas: ele precisa saber exatamente está acontecendo e concordar com isso. Nada justifica violar essas condições.
O problema não está em laquear uma mulher para que ela não tenha filhos. Ela deveria ter inclusive o direito ao aborto para o caso de decidir interromper uma gravidez. O problema está em fazer isso à força, fazendo-a fraudar documentos, em uma sociedade não deu a ela a mínima assistência. A ação do poder público, nesse caso, foi criminoso.
Fica aqui a primeira pergunta/reflexão: o Estado se nega a fornecer educação sexual, se nega a dar planejamento familiar, se nega a dar direito ao aborto, exclui socialmente e só aparece na hora de esterilizar. Nem promotor, nem juiz, nem ninguém prometeu dar assistência a essa mãe ou mesmo a essas oito crianças. Ora, é preocupação com o bem estar ou apenas vontade de que não nasçam mais pobres?
É sintomático também que não se tenha a mesma iniciativa para exigir cirurgias de vasectomia aos homens que abandonam crianças. Afinal, mulher não faz filho sozinha. E até pela lógica um homem pode engravidar em qualquer momento da sua idade reprodutiva, que por sinal é muito maior que a da mulher.
É lógico que o aumento populacional é um problema em um país com 13, 4 milhões de pessoas vivendo em condição de extrema pobreza e mais de 101 mil moradores de rua (informação do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas – Ipea). Planejar como essa população vai aumentar e envelhecer é fundamental para que haja recursos para todos, mas a solução não está em atos como esse.
Até porque não há necessidade, uma vez que o Sistema Único de Saúde já fornece as cirurgias de laqueadura e vasectomia, desde que atendam alguns critérios, como idade e quantidade mínima de filhos (o que inclusive deve ser revisto). O problema está justamente na falta de conhecimento das pessoas sobre o seu direito. Ao forjar uma situação para que alguém não tenha filhos, o poder público não apenas falta com seu dever, mas também quebra o sistema que ele mesmo deveria ser o primeiro a promover.