Encontrar alguém falando sobre a política brasileira de maneira equilibrada sem descambar para o negacionismo é um enorme desafio atualmente. De um lado, crise de ansiedade, textos desesperados falando de que esse pode ser o último domingo da democracia, relembrando 1964 e se preparando para um golpe de Jair Bolsonaro. De outro, pessoas em negação, tentando fingir que está tudo bem, que Bolsonaro é apenas um bufão sem qualquer poder. Ambos estão errados.
Sei que provavelmente você está com muitas perguntas e preocupações na cabeça. Afinal, são milhares de teorias, versões e pontos de vista despejados nas redes diariamente. Vai ter golpe? Temos motivos para nos preocupar? Vai ter violência? Teremos um levante militar? Ou de policiais militares? Ou mesmo de milicianos? Neste texto, vou procurar ser o mais frio e centrado quanto possível pra tentar colocar um pouco de organização nessa bagunça.
Devemos nos preocupar?
Antes de mais nada, isso aqui se trata de uma análise com base no que se sabe hoje. Não tenho a menor pretenção de querer prever o futuro, que depende de uma série de fatores. Aliás, qualquer pessoa que cravar respostas muito certas ou previsões muito afirmativas geralmente erra. Política não funciona assim.
Dito isso, respondo: é claro que devemos nos preocupar. Estamos lidando com fascistas armados e radicais. Pessoas assim não deveriam viver em sociedade justamente porque são perigosas. E se separadas elas são um problema, juntas são um problema ainda maior. E isso precisa ficar muito claro. Por outro lado, é preciso entender a real dimensão desse perigo e quem de fato são essas pessoas. E mais importante: o contexto em que vivemos.
“Ah, mas em 1964…”
Em um texto em um grande jornal do país neste domingo (05/09/21), um analista relembrou a Marcha Pelas Famílias com Deus pela Liberdade em 1964 e a comparou com as manifestações do próximo dia 07 de setembro. Como se, tal qual naquela época, uma manifestação igualmente golpista pudesse resultar em novo golpe de estado, como em um roteiro ensaiado. Aliás, os exemplos são vários.
Outros comparam o Brasil com a Bolívia de 2019, quando esta sofreu um golpe de estado promovido por milicianos. Outros com a baderna promovida pelos apoiadores do presidente Donald Trump, em janeiro deste ano. Ou com a Venezuela de Hugo Chavez, que se tornou um ditador aparelhando o governo com militares. Ou Viktor Orbán, na Turquia. A grande imprensa adora fazer isso, mas erro crasso.
Qualquer tentativa de fazer esse tipo de comparação deveria ser ignorada. Ela cai em um erro que chamados de anacronismo. Não se comparam contextos históricos e sociais completamente distintos achando que o desfecho será o mesmo. O mundo de hoje não é o mundo de 1964, da mesma forma como o Brasil de hoje não é igual àquele, muito menos com nosso vizinho, a Turquia ou qualquer outro país. É como misturar variáveis diferentes em uma equação e esperar o mesmo resultado. Essa crise é nossa, com nosso contexto e com resultados imprevisíveis.
O que querem os bolsonaristas?
Agora vamos analisar o que está posto. Pra começar, você consegue realmente responder o que querem os bolsonaristas? Pare, pense e tente. Conseguiu? Eu não. Claro, em público, eles falam em defender a liberdade e contra o comunismo. Mas qualquer pessoa com mínimo de discernimento e saúde mental sabe que não há liberdade alguma para eles sendo tolhida. E olha que deveria, já que pregar golpe de estado é crime. E é claro que não há qualquer ameaça comunista no horizonte.
Pode parecer trivial, mas não é. O mínimo que qualquer movimento golpista precisa ter é uma motivação. Por que você quer dar um golpe é fundamental para dar o golpe. Ora, analisando a história, sabemos que, em 1964, com a Guerra Fria e interesses políticos locais e estrangeiros convergiram no interesse de retirar de cena qualquer ascenção da esquerda. Além da existência de fato de uma potência comunista. Ou seja, ali tínhamos um motivo claro.
Se hoje a situação econômica do país é a pior possível, se não há nenhum movimento no Congresso para cassar o presidente e a única liderança de oposição no horizonte (Lula) não é tão de esquerda assim, o que motiva as pessoas que vão para as ruas na terça? O motivo é um só: tentar reafirmar que o presidente Bolsonaro não está fraco e só. E a história mostra que, quando é preciso fazer isso, você já está fraco e só.
Violência
Certo. Agora vamos analisar outra coisa que me incomoda bastante nos analistas da internet. Muitos falam que essa manifestação pode ter o seguinte cenário: em caso de violência, Bolsonaro vai decretar uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e, dessa maneira, abrir caminho para um golpe de estado. Só que essa teoria não tem fundamento. Explico.
Teremos basicamente bolsonaristas em manifestações nesta terça. Por qual objetivo, ninguém sabe. Uma pequena minoria da esquerda vai protestar, mas o número deve ser insignificante. Ora, se 90% dos que estarão nas ruas na terça será bolsonarista, vai haver confronto entre quem, exatamente?
E, ora, se fosse esse mesmo o caso, por que isso nunca foi feito antes sob qualquer pretexto. Se temos a polícia totalmente aparelhada, não seria mais simples organizar um motim como o que tivemos em fevereiro de 2020 no Ceará e conseguir isso? Isso também não faz sentido.
PM’s
Outra coisa que causa surto em muitas pessoas é a perspectiva de que Policiais Militares participem dessas manifestações e causem tumultos, tendo em vista o aumento de publicações nas redes sociais desse segmento. Aliás, muitos acreditam que seriam eles a força principal de um golpe de estado, tendo a conivência e omissão das forças armadas, tal qual na Bolívia em 2019.
Primeiro que a adesão de PM’s ao bolsonarismo é mais antiga que o próprio bolsonarismo. O treinamento para uma abordagem do crime como algo cuja resposta só pode ser a violência criou um ambiente tão tóxico nas nossas polícias a ponto de termos hoje a que mais mata, morre e se mata em todo planeta. Ambiente perfeito para ideias de um extremista como Bolsonaro. Então, não entendo o espanto. Mas há um erro de avaliação aí.
Achar que todo PM é potencialmente um bolsonarista assassino é se desconectar da realidade e ignorar as péssimas condições de vida nas quais eles vivem. Claro que nesse meio há os totalmente radicalizados e isso se deve ao próprio condicionamento que o seu meio de vida proporciona, mas estão esquecendo do básico: PM tem conta pra pagar e família pra cuidar. Por mais bolsonarista que seja, entre ameaçar no Facebook e sair de casa pronto pra matar e morrer por alguém distante, deixando sua família desamparada tem uma enorme distância. Aliás, o mesmo vale para evangélicos.
Agora vamos imaginar a situação: O que farão agora? Vão entrar em salas vazias do Congresso e do STF, gritar como loucos e esperar que os ministros e parlamentares simplesmente peçam exílio e saiam do país? Vamos imaginar que aconteça. Estariam todos dispostos a aparecer diante das câmeras do planeta inteiro como uma turba de ensandecidos e baderneiros?
STF e Congresso vazios
Aliás, o simples fato de escolherem desfilar em feriados já mostra o que deve acontecer. Vou dar dois exemplos bem emblemáticos. Em 26 de dezembro de 2020, o governador do Amazonas, Wilson Lima, diante do aumento de casos de Covid-19, resolveu fechar atividades comerciais em todo estado. Os empresários e lojistas ficaram furiosos e organizaram imediatamente uma manifestação.
Dois dos locais escolhidos foram a TV onde o governador trabalhou enquanto apresentador e a sua casa. A pressão deu certo e ele voltou atrás. Atualmente, temos milhares de representantes de povos indígenas acampados na porta do Supremo Tribunal Federal (STF) para pressionar os ministros para derrubarem a tese do chamado Marco Temporal.
Onde eu quero chegar? Se esses manifestantes do dia 07 realmente tivessem interesse em pressionar pela renúncia de ministros ou parlamentares, iriam durante as sessões das casas. Ou até nas casas deles. Não que isso seja correto, claro. Mas mostra que a coragem de brigar pelo presidente vai até onde é confortável e cômodo.
Motivar militares?
Outra tese muito difundida é que os atos do dia 07 devem servir para “motivar os militares a darem um golpe de estado”. Mas isso faz menos sentido ainda. Simplesmente por um único fato: os militares JÁ ESTÃO NO PODER. Esse é um governo militar da medula até o DNA.
Agora pense comigo: você é de uma categoria que ocupa mais de seis mil cargos no governo, ganhando salários de mais de R$ 200 mil mensais. Você sairia de onde está pra defender o ego de um militar incompetente, acabando com a economia e a institucionalidade do país, criando uma crise diplomática internacional, colocando em risco a vida que está levando?
Não chega nunca esse golpe?
Alguém já reparou que a ameaça de golpe de Bolsonaro é sempre para o futuro? É sempre algo que virá, o último aviso, um ultimato, um “acabou porra”, “uma hora não vamos cumprir”, “uma ruptura vai chegar”. E nunca chega? Já falei inclusive sobre isso aqui.
Usam a tese de que a data vai ser no dia da eleição em 2022. Olha, em todos esses anos, eu nunca soube de qualquer golpe de estado com dia e hora marcada. Continuo acreditando que, quem pode dar um golpe, cria suas condições e dá um golpe. E não falo aqui em ameaçar pelas redes sociais, mas em ações práticas. O Taliban está aí pra quem quiser ver. Foi tomando territórios e negociando com países estrangeiros. Ao final, simplesmente tomou o poder.
Afinal, vai ter golpe?
Pessoalmente? Olhando a lógica, diria que não. Claro que, em se tratando de Brasil, a lógica costuma nos pregar peças. E como eu disse, não cabe a mim prever o futuro. Existe a possibilidade da existência de uma grande conspiração secreta que ninguém sabe e que se revele dia 07 e a democracia acabe? Não sei. Mas fora isso, não vejo como um golpe ser possível. Ou pelo menos sustentável. E, sinceramente, não acho que Bolsonaro é menos perigoso ou nocivo se não puder fazê-lo.
Esse é o grande problema do debate político no Brasil hoje. Ou se acha que Bolsonaro é um tirano pronto para nos oprimir ou se acha que ele é inofesivo e caricato. Enquanto se discute se ele pode ou não dar um golpe (e se pudesse já teria dado), ele e seus cúmplices vão literalmente destruindo o país. Já disse outro dia que as pessoas temem Bolsonaro pelos motivos errados.
Aliás, alguém já parou pra pensar que é justamente por isso que ele ameaça tanto e nunca faz nada? Que o seu real intuito seja apenas assustar seus opositores pra que eles achem que não podem fazer nada para detê-lo, do contrário “o golpe acontece”? E o pior é que dá certo.
Pergunto: por que não há nenhuma manifestação fora a do MBL marcada para dar a devida resposta a esse ato golpista e ilegal? Por que não se articula uma greve geral? Por que não se dialoga com caminhoneiros e policiais dissidentes para enfraquecê-lo ainda mais? Eu respondo: porque a oposição está ocupada demais morrendo de medo de alguém que já demostrou ser tão fraco que precisa de manifestações artificiais pra se sentir menos fraco.
Não duvidem: até o dia 07 vai ser um show de posts velando a democracia. Enquanto isso, pelo puro e simples medo, Bolsonaro vai ficando. E destruindo o país enquanto isso.