Contexto

O que é o semipresidencialismo e quais perspectivas ele oferece

Em novembro de 2021, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), surgiu com uma proposta polêmica: a adoção do semipresidencialismo no Brasil. Nesse sistema de governo, o presidente da República compartilha o poder com um primeiro-ministro, eleito pelo Congresso Nacional.

A justificativa é que esse modelo “é mais eficaz para enfrentar crises políticas no Brasil”, como as que culminaram no impeachment da presidente Dilma Rousseff e os constantes atritos do presidente Bolsonaro com as instituições da República. A proposta divide opiniões entre os juristas.

Os apoiadores da ideia listam as vantagens que esse sistema poderia oferecer, dentre elas, uma possível maior estabilidade diante de crises. Os críticos, por sua vez, acusam o deputado de articular dentro do próprio sistema político brasileiro para dar mais poderes ao chamado Centrão, grupo ideológico do qual Lira faz parte.

O fato é que o parlamentar instituiu no dia 18 de março de 2022 um grupo de trabalho para debater temas relacionados ao semipresidencialismo e o tema deve ganhar mais destaque nos próximos meses. O Vocativo ouviu especialistas que opinaram sobre a mudança no sistema e apontaram possíveis cenários políticos que ele pode trazer.

Histórico de crises

Ao longo da história, o Brasil passou por inúmeras crises institucionais, golpes de Estado e processos de impeachment. De 1989 para cá, já foram dois, com a saída dos presidente Collor (por renúncia) e Dilma (pela aprovação do impeachment propriamente dita). Só que a história tem mostrado que não são os crimes que determinam se o presidente perderá ou não o cargo, mas o apoio do Congresso.

Com esse apoio, por exemplo, o ex-presidente Michel Temer, que tinha menos de 10% de aprovação da opinião pública e graves denúncias de corrupção, foi mantido no cargo, enquanto Dilma caiu, mesmo que tenha sido mais tarde inocentada da acusação de “pedaladas fiscais”. Por conta desse cenário, sempre se discutiu qual seria a configuração ideal do sistema político brasileiro. E essa discussão já passou por consulta popular.

Em 1993, quatro anos depois da primeira eleição direta para presidente após a ditadura militar, os brasileiros foram consultados de deveriam mudar a forma e o sistema de governo do país. Os cidadãos foram às urnas para decidir se mudariam a forma de governo para a monarquia em vez da república e o sistema de governo para o parlamentarismo em vez do presidencialismo. A república ganhou por 66,26% a 10,25% e o presidencialismo, por 55,67% a 24,91%. O restante votou branco ou nulo.

Com o impeachment de Dilma Rousseff e as constantes ameaças contra a democracia do presidente Bolsonaro, o debate sobre o sistema de governo voltou à pauta política do país. O problema é que, como o assunto já foi votado em plebiscito, esse novo sistema precisa existir dentro do presidencialismo. Foi aí que surgiu a tese de algo que seria um meio-termo: o semipresidencialismo.

Os problemas do presidencialismo

Na avaliação de vários juristas, essas crises frequentes parecem ter como origem em problemas sistêmicos do presidencialismo. O primeiro deles é a divisão do poder. “O Chefe de Estado coordena os Poderes do Estado de forma suprapartidária, mas como pode fazê-lo se também é o Chefe de Governo? O primeiro é o juiz do jogo político e o segundo o principal jogador. Papéis, como percebe, totalmente incompatíveis”, explica Elival Ramos, professor de direito constitucional da Universidade de São Paulo e um dos participantes do grupo de trabalho do tema na Câmara dos Deputados.

Ainda segundo o jurista, apesar da separação de poderes garantida na Constituição, a proporção desse poder é desequilibrada. “A enorme soma de poderes do Presidente não é contrabalançada pelo controle político do Parlamento. Veja a crise que vivemos nos governos Collor e Dilma por não termos um mecanismo rápido e eficiente para afastar dois Chefes de Governo totalmente divorciados da vontade popular, não no início, mas no decorrer dos respectivos mandatos”, afirma Elival.

Outro problema no presidencialismo tem a ver com fiscalização e responsabilização. Trata-se da expressão em inglês democratic deficit accountability (algo como déficit de prestação de contas democráticas). Ela significa, a grosso modo, a deficiência de mecanismos que permitam que os gestores de uma organização prestem contas e sejam responsabilizados pelo resultado de suas ações.

Como a figura central de poder do país é o presidente, a responsabilização da opinião pública recai quase que totalmente sobre ele, mesmo que o Congresso tenha papel importante no jogo político. “Entre os países da OCDE, o Brasil é o país que tem a maior capacidade de emendar o orçamento federal entre os membros. Enquanto nos outros apenas 4% do orçamento é destinado a verbas parlamentares, no Brasil elas chegam a 20%”, explica Ricardo Ceneviva, Professor de Ciência Política do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Ceneviva aponta que há um problema mais urgente dentro da política brasileira que precisa ser resolvido: a quantidade de partidos políticos no Brasil. Nenhuma democracia do mundo tem a quantidade de partidos que existem aqui. E com tantos partidos para atender, qualquer chefe de governo se vê obrigado a atender múltiplos interesses, nem sempre republicanos. “Enquanto não resolvermos o problema da fragmentação partidária, a dificuldade de formar uma coalizão para governar vai continuar tanto no parlamentarismo quanto no semipresidencialismo”, afirma Ricardo Ceneviva. Mas afinal, o que seria o semipresidencialismo?

O que é o semipresidencialismo?

No sistema semipresidencialista, o chefe do governo é o primeiro-ministro, mas há uma diferença importante desse modelo para o parlamentarismo, onde também existe essa figura política. No semipresidencialismo, o presidente preserva alguns de seus poderes.

“Semipresidencialismo é um sistema de governo diferente, no qual você tem a divisão da chefia, tendo um chefe de estado – o presidente – e um chefe de governo – o primeiro ministro. No parlamentarismo, o primeiro ministro é escolhido exclusivamente pelo parlamento. Já no semipresidencialismo, esse chefe de governo é escolhido pelo parlamento e pelo presidente, além de dissolver o próprio parlamento”, explica Antônio Carlos de Freitas Júnior, doutor em Direito Constitucional e Eleitoral pela Universidade de São Paulo (USP).

Como ficaria a organização dos poderes?

Caso seja aprovado, o semipresidencialismo vai mudar a distribuição e a dinâmica dos poderes de Estado no Brasil. Com esse sistema, o país teria o legislativo, na figura da Câmara e do Senado, o executivo, com o primeiro ministro, a chefia de Estado, na figura do presidente da República eleito e o judiciário como é atualmente. “Existiria uma relação que chamamos de dupla confiança. Para o governo do primeiro ministro continuar existindo, ele teria de ter o apoio do parlamento e do presidente da República”, explica Freitas Júnior.

“O que se quer dizer com semipresidencialismo é que se pretende estudar a implantação de um sistema presidencialista, com algumas práticas parlamentaristas (como a criação do cargo de Ministro-coordenador ou Primeiro-Ministro, subordinado ao Presidente, mas também podendo ser afastado por moção de desconfiança do Parlamento), ou um sistema parlamentarista de dupla confiança, em que o Primeiro-Ministro, Chefe de Governo, depende da maioria parlamentar e também da vontade do Presidente, de forma equitativa. Enfim, um sistema em que um Presidente eleito não será meramente decorativo, mas terá funções relevantes, porém sem exercer a função de governo”, afirma Elival Ramos.

O principal argumento de defesa do semipresidencialismo é que ele permitira ajudar o chamado democratic deficit accountability, citado alguns parágrafos acima. Ao deslocar a função do parlamento de mero negociador de verbas a agente de decisões de governo, alguns juristas enxergam que a balança de poder e responsabilidade do país ficaria mais equilibrada.

Perspectivas

“Esse tema [forma e sistema de governo] emerge de trinta em trinta anos, muito mais pela vontade das elites políticas do que pelo povo. Ele já foi alvo de dois plebiscitos, onde o presidencialismo ganhou por larga margem. O debate é legítimo porque é a essência da própria democracia. Mas desde que leve em conta a vontade do povo”, opina Ricardo Ceneviva. 

O cientista afirma que, seja qual for o caminho, apenas a mudança de sistema não vai ser o bastante.”Não existe uma bala de prata. O semipresidencialismo não é mais ou menos estável que o presidencialismo. Não será o parlamentarismo ou semipresidencialismo que vai resolver os problemas do Brasil. Até porque muitos desses problemas, como o presidente formar uma coalizão para governar, não têm origem na forma de governo. Eles se derivam da fragmentação partidária”, alerta Ceneviva.

Quem também compartilha desse ceticismo é Maria Herminia Tavares de Almeida, pesquisadora e professora Titular de Ciência Política Universidade de São Paulo (USP). “Há semi-parlamentarismo de diferentes tipos, como há parlamentarismos de diferentes tipos. Não creio que sejam uma boa solução para promover estabilidade. Na prática, esses sistemas funcionam ou como parlamentarismo puro ou como presidencialismo. Isso os que funcionam bem. Por outro lado, como presidente e parlamentares são escolhidos pelo mesmo corpo eleitoral e submetidos às mesmas influências do dinheiro grosso, não vejo como um possa expressar melhor ou pior a vontade dos eleitores”, alertou.

Deixe uma resposta

%d blogueiros gostam disto: