Desde que venceram o segundo turno das Eleições deste ano, a equipe de transição do futuro presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT) passou a se debruçar sobre um problema: garantir a manutenção do Auxílio Brasil (que voltará a se chamar Bolsa Família) no valor de pelo menos R$ 600,00. Além disso, outras promessas de campanha também precisam ser honradas. E desde então, um termo passou a ser frequente nos noticiários: o chamado Teto de Gastos.
Teto de Gastos foi um mecanismo criado e aprovado no Congresso Nacional em dezembro de 2016, logo após o impeachment da presidente Dilma Rousseff por meio da Emenda Constitucional 95/2016. Esse mecanismo limitou os gastos públicos no Brasil por 20 anos. A PEC afirmava ter como objetivo o “equilíbrio das contas públicas por meio de um rígido mecanismo de controle de gastos”. O texto determinava que a partir de 2018, as despesas federais só poderiam aumentar de acordo com a inflação acumulada conforme o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).
A medida foi alvo de muitas críticas em todo o país. Na época, a Organização das Nações Unidas (ONU) divulgou uma nota em que criticava a proposta. O relator especial da ONU para extrema pobreza e direitos humanos, Philip Alson, afirmou que o Teto teria como efeito principal o prejuízo aos pais pobres e o aumento da desigualdade. O que de fato acabou acontecendo. Mas afinal, o Teto de Gastos se justifica? Ele funciona?
O Teto de Gastos funciona?
Mas afinal, com a aprovação do Teto de Gastos, as contas públicas realmente ficam equilibradas? A resposta é não. A economista e pesquisadora sênior Monica de Bolle do Peterson Institute for International Economics, nos Estados Unidos, afirma que o receio da ONU, de que a população mais pobre fosse penalizada, acabou de fato acontecendo. “Um dos seus efeitos negativos foi acabar sendo um mecanismo por meio do qual o governo apertou as despesas em áreas prioritárias e desviando recursos para a história do Orçamento Secreto, sabe-se lá para onde”, lamenta.
Segundo a economista, passados os primeiros anos da vigência do teto, outro mito ficou para trás: o controle da dívida pública. “A dívida pública só subiu. Não houve controle nenhum por meio do teto. E da forma como ele foi desenhado, nunca houve qualquer consonância com qualquer trajetória de endividamento público. Ele não foi feito para ser um instrumento para alcançar uma meta. Não tem nenhuma evidência de eficácia do teto em nenhum sentido”, critica Monica.
Falha conceitual
Outro motivo pelo qual o Teto de Gastos é alvo de crítica é a base da sua concepção. Daniel Conceição, professor de Economia no IPPUR/UFRJ e presidente do Instituto de Finanças Funcionais para o Desenvolvimento (IFFD) explica que é uma tese mentirosa e ultrapassada a ideia de que o governo federal brasileiro deve cuidar do equilíbrio fiscal para evitar o esgotamento de suas fontes de financiamentos e/ou as supostas consequências deletérias de suas dívidas públicas atingirem níveis insustentavelmente elevados.
“A verdade é que o Estado brasileiro detém absoluta capacidade financeira para realizar pagamentos de quaisquer valores, pelo simples motivo de que a moeda com que o governo faz os seus pagamentos é uma dívida estatal, que apenas o Estado pode criar, e de fato cria sempre que realiza um pagamento”, explica o professor.
Ainda segundo Daniel, a moeda é uma dívida pública criada pelo Estado. Logo, é inevitável que aconteçam déficits fiscais é o aumento da dívida do governo, porém não porque o governo tome dinheiro emprestado do setor privado para gastar mais do que arrecada, mas porque ao gastar mais do que arrecada o governo cria e entrega mais dinheiro ao setor privado do que retira.
“Como o próprio dinheiro já é uma dívida estatal, o gasto deficitário aumenta o endividamento público por definição. No Brasil, este fato fica inicialmente mascarado pelo indicador escolhido para medir a dívida do governo, uma vez que o total de dívida pública bruta do governo desconsidera o passivo do Banco Central, onde fica registrada a base monetária introduzida nas carteiras privadas sempre que o governo realiza um pagamento”, ensina Daniel.
Mas este fato acaba não fazendo diferença, uma vez que a moeda (mais precisamente base monetária) criada pelos pagamentos estatais acaba transformada em títulos públicos que rendem juros. “Ou seja, o endividamento estatal aumenta quando o governo gasta mais do que arrecada porque desta forma ele cria e oferece moeda ao setor privado, moeda esta que depois acaba transformada/aplicada em títulos públicos” afirma o economista.
A pandemia e o Teto de Gastos
Ainda segundo Daniel Conceição, a tese de que a falta de limites financeiros para os gastos do governo poderia destruir a economia deveria ter se tornado evidente e inquestionável em 2020, primeiro ano da pandemia da Covid-19. “Economistas comprometidos com o mito do Estado que se financia cobrando impostos ou tomando empréstimos do setor privado foram incapazes de explicar a origem do dinheiro com que o governo brasileiro realizou o maior déficit primário de sua história: aproximadamente 750 bilhões de reais”, pondera o economista.
Na ocasião, diante da necessidade do pagamento do Auxílio Emergencial, o Congresso aprovou a chamada PEC de Guerra, ignorando o teto de gastos. “Afinal, não teria sido possível recorrer a empréstimos junto ao setor privado quando este se encontrava devastado pela pandemia. Como tomar empréstimos de bancos brasileiros se estes foram os primeiros a pedir socorro ao Estado? Como vender títulos públicos às empresas e famílias brasileiras cujas rendas estavam tão fortemente deprimidas?”, questiona Conceição.
Ainda segundo o economista, o que ocorreu realmente é que o governo brasileiro realizou seus gastos como sempre fez antes e como continua fazendo agora: criando moeda através do débito da conta única do Tesouro que depois acaba reabastecida sem pressionar os juros de curto prazo graças ao compromisso do Banco Central de manter na meta a taxa referencial de juros (Selic).
O que impedia o governo de gastar antes de 2020 não era a falta de fontes de financiamento, mas apenas as restrições legais (sendo o teto de gastos a pior de todas) que desautorizavam o governo de gastar além de um limite arbitrário e disfuncional. Bastou que tais regras fossem suspensas (em 2020 pela PEC do Orçamento de Guerra, e mais recentemente pela PEC Kamikaze) para que o governo estivesse autorizado para gastar mais.
Inflação
Mas afinal, um governo pode gastar sem limites? Uma pergunta muito recorrente é: “Se não existe limite financeiro verdadeiro para o total que o governo brasileiro pode gastar isso não poderia levar ao gasto inflacionariamente excessivo?” A resposta, segundo Daniel Conceição, é SIM.
“Financeiramente e operacionalmente, seria possível para o governo pagar um milhão de reais para cada brasileiro. Obviamente, esta seria uma política muito ruim, pois produziria um choque inflacionário devastador para a saúde macroeconômica do Brasil. Por este motivo, é preciso sim impor limites aos gastos do governo. O problema é que como as atuais regras fiscais são feitas para evitar que o governo aumente a sua dívida ao invés de buscar que o gasto seja eficiente e que não seja inflacionariamente excessivo, elas acabam mais atrapalhando do que ajudando”, avalia o economista.
Orçamento Secreto
Outro argumento dos defensores do teto de gastos bastante criticado era que o congelamento dos gastos do governo levaria a uma alocação mais eficiente dos gastos do governo. Na prática, e previsivelmente, o que se verificou foi o oposto. Num contexto de “farinha pouca”, coube aos atores politicamente mais fortes – leia-se Centrão – determinarem para quem seria oferecido o “pirão escasso” primeiro. Áreas essenciais como saúde e educação foram levadas à quase asfixia financeira, enquanto as emendas de legisladores aliados ao governo foram generosamente financiadas sem controle e transparência, graças ao sistema hoje conhecido como Orçamento Secreto.
Confiança de investidores
Outro mito trazido pelo Teto de Gastos é que o equilíbrio fiscal produziria redução nos juros e/ou aumento na confiança dos investidores, resultando na expansão do investimento privado. A verdade é que o oposto é que tende a ocorrer. Quando o governo gasta mais ele aumenta o incentivo para que empresários elevem os seus investimentos.
“Mesmo que algum investidor seja tão ideologicamente fanático ao ponto de recusar expandir seus negócios num contexto de crescimento das suas vendas, simplesmente por ter lido ou visto notícia em algum lugar sobre a suposta ‘deterioração fiscal’ do governo brasileiro (crescimento da dívida pública), tal investidor acabaria sendo substituído por investidores mais pragmáticos que reagissem corretamente às oportunidades lucrativas criadas”, analisa Daniel Conceição.
Vale lembrar ainda que que a taxa de juros referencial de uma economia é escolhida e controlada pela autoridade monetária – no caso o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central (BC) – que pode aumenta-la e reduzi-la independentemente de qualquer indicador fiscal.
É preciso se preocupar com gastos?
Segundo os economistas ouvidos pelo Vocativo, não existe motivo inteligente para que se tema tanto o gasto público. isso porque gastos públicos não são necessariamente mais inflacionários do que gastos privados. A diferença é que gastos públicos podem ser realizados de maneira a corrigir ineficiências macroeconômicas, enquanto os gastos privados tendem a exacerbar tais ineficiências.
Quando a economia está crescendo, é a até possível que o crescimento seja sustentado pelo gasto privado por algum tempo. Bancos se tornam cada vez mais dispostos a emprestar para investidores cada vez mais otimistas, fazendo crescer o gasto privado e com ele o produto e o nível de emprego da economia. Durante crises, no entanto, a dinâmica se inverte. Bancos ficam cada vez menos dispostos a emprestar e investidores cada vez menos otimistas. Nestes momentos, cabe ao governo gastar mais, mesmo que a sua renda não esteja crescendo.
Além de sua responsabilidade como gestor macroeconômico, que exige que o governo gaste mais em períodos de recessão, o governo deve assegurar a oferta de bens e serviços públicos garantidores dos direitos básicos da população. O verdadeiro limite para a qualidade e quantidade de bens e serviços públicos não é financeiro, mas material: o que é possível produzir?
“Da mesma forma quo o governo não deve gastar demais, empurrando a economia para além do seu limite produtivo/inflacionário, também não deve gastar menos do que suficiente para que se aproveitem plena e eficientemente todas as oportunidades produtivas disponíveis no país. Para que se encontre este equilíbrio entre o gasto insuficiente e o gasto exagerado, precisamos superar o mito de que o governo precisa obter fontes de financiamento para gastar e reconhecer que o Estado é quem cria moeda e o faz sempre que realiza um pagamento”, explica Daniel Conceição.
O que ficaria no lugar do Teto de Gastos
Os economistas consultados pelo site são unânimes em garantir o fracasso do atual modelo. “A alternativa funcional ao teto de gastos seria a sua revogação completa e definitiva, juntamente com as demais restrições fiscais que buscam combater o endividamento público (LRF e regra de ouro, por exemplo) e a valorização do planejamento orçamentário funcional (perfeitamente compatível com a estrutura atual de PPA, LDO e LOA) em que o limite ao gasto público fosse identificado em cada situação, pela comparação da estimativa do seu impacto inflacionário com o seu efeito estimulador da produção”, sugere Conceição.
“Isso não quer dizer que regras fiscais como UM teto de gastos não sejam boas regras. Elas podem ser muito boas se forem bem desenhadas. Há outras coisas que podemos fazer. Você pode estabelecer uma meta de superávit primário”, afirma Monica de Bolle. “Na verdade, para o desenho de um instrumento como esse, você precisa ter um quadro bem delineado de metas de longo e médio prazo”, analisa a economista.
Segundo De Bolle, uma regra de crescimento da despesa precisa estar vinculado com o que se pretende alcançar em termos de endividamento público e, mais ainda, em termos de longo prazo, das metas de desenvolvimento para o país. Em outras palavras: você precisa controlar as contas, mas sem perder de vista a necessidade de desenvolver o Brasil.
Independente disso, Monica de Bolle afirma que uma coisa precisa ser feita o quanto antes. “Dá pra pensar em vários desenhos alternativos de teto. O importante é que o Teto saia da Constituição. O que a gente não pode ter é uma regra fiscal enraizada na Constituição Federal. Isso não é lugar de uma regra fiscal, porque isso enfraquece a força normativa dela. Isso é ponto pacífico entre juristas, mas infelizmente não é entre economistas. Mas deveria ser”, lamenta.