Na primeira quinzena de setembro, a Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania (Sejusc) deu início à campanha “Não troque a infância por moedas”, com o objetivo de “combater e conscientizar” a população sobre a mendicância infantojuvenil. A maneira como a ação foi conduzida, no entanto, gerou pesadas críticas da opinião pública. Além disso, sem oferecer alternativas, é pouco provável, de acordo com fontes ouvidas pelo Vocativo, que a campanha tenha êxito.
Além de ser acusada de não oferecer alternativas para o problema, totens em formato de crianças com o slogan da campanha foram espalhados em shoppings da cidade e considerados ofensivos pela população. “A medida adotada pela Sejusc foi inadequada por ser uma medida que além de paliativa, ou seja, não resolver o problema, parece ter sido pensada ignorando que a problemática está completamente ligada a um contexto de extrema pobreza que uma parcela considerável da população do país está atravessando”, afirma a assistente social Nicole Fernandes.
A secretária titular da Sejusc, Mirtes Salles, afirmou que há esquema de aluguel de crianças para pedirem dinheiro em semáforos. “Essas crianças estão sendo aliciadas, exploradas por pais, avós, parentes e não-parentes. Existe hoje uma rede criminosa alugando essas crianças para que elas funcionem como arrecadadoras de dinheiro”, disse a gestora. O Vocativo entrou em contato com a Sejusc e com a Secretaria de Segurança Pública do Amazonas (SSP-AM) para que fossem passados detalhes desse esquema, mas até o momento não obteve resposta.
“Se esse é o problema, não dar dinheiro para quem estar nas ruas está longe de resolver o problema, afinal, é muito provável que eles encontrem outras formas de explorar essas crianças e adolescentes. É necessário uma ação conjunta que possa desmembrar essa rede e responsabilizar os envolvidos e paralelamente garantir que essas crianças e adolescentes estejam assistidas pela rede proteção social”, pondera Nicole.
Insegurança alimentar e miséria
O fato é que a insegurança alimentar e miséria são uma realidade cada vez maior no Amazonas. De acordo com dados de setembro de 2020 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 2 milhões e 765 mil (ou 71%) dos moradores do Amazonas possuem algum grau de Insegurança Alimentar (deficiência na alimentação). Destes, 37% estavam em Insegurança Alimentar moderada (819 mil) e Insegurança Alimentar grave (622 mil), ou seja, convivem com a fome. Com o agravamento da pandemia e da inflação, esse número pode ser bem maior atualmente.
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Contínua) 2019, também do IBGE, 47,4% da população do Amazonas tem rendimento domiciliar per capita de menos de US$ 5,5 PPC. Assim, quase metade da população do estado se encontra na linha internacional da extrema pobreza desde 2019.
“Diante de um cenário político e social caótico de desemprego, desmonte e corte no orçamento das políticas de proteção social e má gestão do Estado, pedir alimento e dinheiro voltou a ser um meio de sobrevivência”, lembra Nicole Fernandes. “Milhares de famílias pelo país estão recorrendo a ossos, restos de alimentos e até carcaças de animais para permanecerem vivas. Há pessoas que chegam ao extremo e recorrem ao furto ou roubo de alimentos para levar comida para suas famílias. As pessoas estão nessa situação porque foram empurradas para isso e não por vontade. Foi o que lhes restou diante desse cenário”, lamenta.
As possíveis soluções
Com uma situação de fome e miséria estruturada na sociedade amazonense, enfrentar esses e outros problemas sociais, sem pensar de maneira estrutural, não dará certo. Pedir dinheiro nas ruas é apenas o sintoma, não a doença em si.
“Este é um tema sempre polêmico. Se por um lado, legalmente o Estado não pode impedir o direito e ir e vir de quem quer que seja, o Estatuto da Criança e do Adolescente determina que cabe a este mesmo Estado o papel de proteger crianças e adolescentes de situações como o trabalho infantil em suas piores formas (sim, pedir esmola é trabalho). Essas crianças devem ser protegidas por meio da garantia de matrículas na rede de ensino e moradias para que tenham local digno para morar”, alerta Ida Pietricovsky, especialista em Comunicação do UNICEF.
“Cabe ao Conselho Tutelar identificar as situações de violação de direitos e encaminhar as situações às autoridades. Mas tudo isso em diálogo com essas famílias que se encontram em situação de extrema vulnerabilidade social e respeitando os aspectos culturais específicos dos grupos de migrantes e refugiados”, orienta Ida.
Outra medida importante é fortalecer a rede de assistência social para poder diagnosticar a extesão do problema. “A secretaria precisa acionar a rede socioassistencial existente e conjuntamente propor ações que tenham impacto positivo e preferencialmente permanente na vida dessas pessoas. Para isso é necessário um levantamento para saber a respeito dessas crianças, adolescentes e suas famílias, suas condições de vida. Além de fortalecer essa rede que está sobrecarregada com falta de financiamento e profissionais para dar conta da demanda”, sugere Nicole Fernandes.
“Para que crianças e adolescentes deixem as ruas e não sejam explorados é necessário que o Estado cumpra seu papel de garantir dignidade a elas e suas famílias. Não dar dinheiro ou comida a quem pede é insuficiente e está longe de resolver a questão”, afirma a assistente social.