Contexto Covid-19

Negligência e negacionismo: como a vacinação no Brasil corre perigo

Apesar do avanço da vacinação contra a Covid-19 no Brasil, ainda existe um número resiliente de pessoas que ainda não tomou suas doses ou está com o esquema vacinal incompleto. Enquanto isso, grupos cada vez mais organizados e barulhentos orquestram campanhas de desinformação para minar a confiança da opinião pública nas vacinas. O maior expoente desse movimento no país é o próprio presidente Jair Bolsonaro (PL). Mas o problema é bem ainda mais complexo do que isso.

Antes mesmo da pandemia da Covid-19 e da chegada do bolsonarismo ao poder, outras campanhas de imunização já vinham em queda no Brasil. E atualmente, muitos que demonstram hesitação ou desinteresse para tomar ou levar seus filhos ao posto de saúde não se declaram bolsonaristas.

Afinal, por que isso está acontecendo? O que motiva pessoas a se arriscar e até militar contra vacinas mesmo diante de uma doença mortal que já matou milhões de pessoas em todo o mundo? E por que há outras que não se vacinam mesmo não acreditando em teorias conspiratórias? Pra compreender melhor esse problema, o Vocativo ouviu alguns especialistas que estudam esse tema.

Campanhas em declínio

O Sistema Único de Saúde (SUS) oferece todas as vacinas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para a população por meio do por meio do Programa Nacional de Imunizações (PNI). Atualmente, são disponibilizadas pela rede pública de saúde, de todo o país, cerca de 300 milhões de doses de imunobiológicos ao ano, para combater mais de 19 doenças, em diversas faixas etárias.

O problema é que a procura por essas vacinas vem caindo ao longo dos últimos anos, antes mesmo do surgimento dos bolsonaristas e seu negacionismo científico. Segundo a Revista Consensus, da Fiocruz, o primeiro motivo é que as doenças que as vacinas previnem deixaram de representar a mesma ameaça do passado por causa da proteção dos próprios imunizantes.

Pais que não conviveram com a doença por terem sido vacinados na infância, muitas vezes não percebem a importância da imunização dos próprios filhos. E esse comportamento acaba influenciando nas novas doenças que aparecem, como no caso da Covid-19 que veremos nos próximos parágrafos.

Os hesitantes

Mas então será que o movimento antivacina já estava presente no Brasil antes mesmo do governo Bolsonaro e isso explicaria a queda nas campanhas de vacinação. Pouco provável. A primeira coisa que precisa ser entendida: nem todo mundo que não toma vacina necessariamente é antivacina.

“A aceitação das vacinas funciona numa espécie de contínuo, então existem vários posicionamentos dentro desse tema. Num extremo, a gente tem o público que aceita todas as vacinas com confiança. No outro, fica uma pequena parte da população que a gente pode chamar de antivacinação. E no meio, ocupando uma série de posicionamentos, fica a população hesitante”, explica Dayane Machado, doutoranda no Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp, onde pesquisa desinformação sobre saúde com foco em vacinas e em Covid-19.

Para a pesquisadora, é importante diferenciarmos os grupos. “Como exemplos de pessoas hesitantes, podemos citar aquelas que recusam algumas vacinas, mas que aceitam outras; aquelas que adiam o calendário vacinal; aquelas que até obedecem ao calendário, mas que não se sentem totalmente seguras em relação a uma ou outra vacina, etc”, afirma Dayane.

Outro motivo pelo qual as pessoas se arriscam é porque sentem que o risco pode estar muito mais no consumo das vacinas do que nas doenças preveníveis por elas. “Por exemplo, muita gente ainda acredita que a Covid-19 não ofereça riscos pras crianças. E se a Covid-19 não prejudica as crianças, pra quê vacinar?”, exemplifica a doutoranda.

Além dessa percepção equivocada da doença, existem outros fatores que aumentam a possibilidade de hesitação em alguns grupos, como a incerteza como parte do processo científico, as informações desencontradas emitidas pelos próprios órgãos oficiais e os níveis de confiança da população em relação às instituições oficiais, além da exposição excessiva à desinformação.

A boa notícia é que mesmo as pessoas que hoje se sentem inseguras de tomar a vacina tendem a ceder com o tempo. “É natural que contextos de ansiedade como uma pandemia ou o lançamento de novas vacinas ou tecnologias relacionadas a vacinas gerem algum nível de hesitação em parte da sociedade. Mas, felizmente, a hesitação não leva necessariamente à rejeição, já que mesmo pessoas inseguras em relação a alguma vacina podem, ainda assim, decidir se vacinar”, afirma a cientista.

Os antivacinas

Como foi explicado, uma das coisas que atrapalha o convencimento das pessoas que estão hesitantes em se vacinar é o outro extremo dessa cadeia: os antivacinas. Você pode conhecer ou ter contato com alguns deles no dia a dia. Seu tio bolsonarista que sempre compartilha notícias absurdas sobre vacinas desenvolverem AIDS, sua colega de trabalho que recebeu um vídeo que a Globo não mostra provando que elas causam a morte de crianças ou coisas do tipo. Mas você já parou para pensar em quem está por trás dos conteúdos que eles compartilham insistentemente no seu Whatsapp? E por que faz isso?

Antes de mais nada, o óbvio: quem produz e dissemina desinformação na internet quer se beneficiar dela de alguma forma. “O incentivo pode ser financeiro, como é o caso mais comum, mas também pode ser prestígio, poder, validação. Por isso a gente vai ter nomes abertamente antivacinação tentando aproveitar a pandemia pra alcançar públicos maiores, mas também vai ter políticos, celebridades e outras pessoas que não necessariamente têm um histórico como ativistas antivacinação, mas que vão encontrar alguma vantagem na desinformação sobre a Covid-19”, alerta Dayane Machado.

Mas como esse movimento começou? Afinal, pelo menos aqui no Brasil sempre tivemos a cultura de tomar todas as vacinas oferecidas sem questionar a fabricante ou resultados de testes. A origem do movimento antivacina moderno aconteceu no final dos anos 1990.

“O movimento antivacinação moderno ganhou maior visibilidade depois de 1998 — ano de publicação de um artigo fraudulento , que tentava relacionar a vacina tríplice viral ao desenvolvimento de autismo — e se fortaleceu com a popularização da internet e com o surgimento de várias empresas de tecnologia desde aquela época”, explica Dayane.

Medo e conflito

Os ativistas antivacinação usam mais ou menos as mesmas táticas e tipos de desinformação ao longo dos anos. O truque mais comum é gerar medo e ansiedade nas pessoas, a forma mais fácil de fazer isso é questionando a segurança das vacinas. A outra é atacar quem defende a imunização e os órgãos responsáveis por regulamentar o uso delas.

“Esse fenômeno está relacionado a uma crise de confiança nas mediações tradicionais, como a imprensa profissional, e as autoridades sanitárias, como médicos e cientistas. Os conteúdos desinformativos e negacionistas focam em minar a credibilidade dessas instituições e, usualmente, adotam tons conspiratórios, como se essa elite que ocupa cargos de poder em instituições tradicionais estivesse envolvida em um plano secreto para prejudicar a população”, afirma Sabrina Almeida, Pesquisadora e Analista Política pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Também é fundamental para esses grupos a dinâmica de criação de inimigos e de estímulo ao conflito público, tal qual se observa desde o início da pandemia. “O conflito é usado como uma forma de aumentar a coesão e engajamento de grupos políticos, pois os seus aliados se veem juntos na missão de impedir o avanço do ‘inimigo’. Esse inimigo já foi o lockdown, as máscaras, a vacina, o passaporte da vacina e agora é a vacinação infantil”, afirma Victor Piaia, Doutorando e mestre em Sociologia pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

“Esse tipo de tática funciona porque é uma maneira rápida de gerar ansiedade, indignação e medo nas pessoas. A gente pode dizer então que, assim como outros acontecimentos relacionados à pandemia (obrigatoriedade no uso de máscaras, lockdowns, discussões sobre passaportes vacinais etc.), a aprovação da vacinação pra crianças é mais uma oportunidade que os ativistas antivacinação tentam explorar pra alcançar mais pessoas e fortalecer o movimento”, pondera Dayane.

Redes sociais

Observando o gráfico das campanhas de vacinação contra diversas doenças, é possível perceber que o declínio começou por volta de 2012, período onde as redes sociais passaram a ser mais populares no Brasil. É inegável que a internet tem tido papel preponderante dentro do crescimento tanto da hesitação em se vacinar, como no crescimento da desinformação sobre vacinas.

“Primeiro, a gente teve ativistas antivacinação criando sites e blogs pra falar sobre esse assunto, mas com o passar do tempo, eles também aprenderam a explorar os recursos das redes sociais pra formar comunidades, pra fazer a desinformação alcançar mais gente e pra lucrar com esse tipo de conteúdo”, lembra Dayane Machado.

Isso significa que grupos pequenos, mas engajados, como os movimentos antivacinação, conseguem explorar ao máximo a lógica das redes sociais (desinformação e conteúdo sensacionalista ou extremo gera mais engajamento, alcance e monetização) e a permissibilidade das empresas pra fazer barulho e espalhar desconfiança em relação a vacinas.

“Infelizmente, a exposição excessiva a desinformações e teorias da conspiração pode diminuir a adesão das pessoas a recomendações oficiais de saúde e diminuir a intenção das pessoas de se vacinar e de obedecer ao calendário vacinal . Então, embora os movimentos antivacinação sejam pequenos, eles são perigosos e têm se fortalecido cada vez mais nos últimos anos”, afirma Dayane.

“Pessoas se arriscam porque muitas vezes estão inseridas em grupos que disseminam e sustentam essas crenças e são bombardeadas de conteúdos que as fazem ter dúvidas sobre as afirmações e intenções dessas instituições. Então, os próprios atores que instigam a dúvida sobre a credibilidade e as intenções da ciência, viram as autoridades com respaldo e influência para instruir o que deve e o que não deve ser feito”, afirma Victor Piaia.

Sempre apelam para as crianças

Não é por acaso que o ataque ao processo de vacinação se intensificou com a inclusão das crianças na vacinação contra a Covid-19 pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O próprio presidente Bolsonaro e seus apoiadores passaram a boicotar diariamente o processo e até ameaçar os sevidores da agência. Isso não é por acaso. As crianças são algo sensível ao movimento antivacina.

A temática infantil é especialmente capaz de gerar reações de indignação e mobilização nesse tipo de estratégia, em particular por atingir grupos que apelam para pautas morais e conservadoras. O debate sobre a vacinação infantil, então, mobiliza uma luta já estabelecida contra a vacinação e o gatilho social da proteção às crianças. Ou seja, o engajamento no tema serve como fator de aumento de coesão interna nos grupos negacionistas e, também, como uma forma de expandir essa perspectiva para um público mais amplo.

Uma outra tática que você pode ter visto é inventar histórias usando fotos e informações roubadas de outros lugares. Nesse caso, ele usam essas imagens pra criar histórias que têm mais ou menos a mesma estrutura: começa com uma criança fofinha e contente, ela toma alguma vacina e logo depois ela fica doente ou morre.

“Quando esse medo é direcionado a crianças, o conteúdo tem mais chance de gerar reações emocionais que podem se traduzir em maior engajamento nas redes sociais. É por isso que a gente encontra tantos ‘testemunhos’, geralmente envolvendo crianças, dentro de comunidades antivacinação. Às vezes, os ativistas tentam explorar o luto das famílias, distorcendo histórias reais pra atribuir a morte de crianças ao uso de alguma vacina”, explica Dayane Machado.

Movimento ainda é pequeno, mas isso pode mudar

Apesar de toda pressão do próprio presidente da República e seus aliados, o processo de vacinação está avançando e a maioria dos pais desejam vacinar seus filhos, segundo diversas pesquisas divulgadas na imprensa nas últimas semanas. Isso mostra que o movimento antivacina no Brasil ainda não tem poder suficiente para causar estragos como nos EUA e na Europa. Mas isso pode mudar.

“Não há muitas dúvidas que esses grupos sofreram uma diminuição desde o início da pandemia. É importante, no entanto, atentarmos para três fatores: o primeiro é que as pessoas e grupos tendem a ser mais discretos quando são minoria no debate público. Ou seja, as pessoas tendem a se posicionar menos quando estão em contextos em que não encontraram companhia. Isso não impede que em algum momento esse conjunto de pessoas volte a ganhar voz no futuro”, alerta Victor Piaia.

Um segundo ponto se relaciona com as dinâmicas de formação da opinião pública. E aqui, o que importa não é o tamanho do grupo, mas a capacidade de mobilização. E é aí que está o problema. “Sabemos que grupos pequenos, porém organizados, conseguem ser mais influentes do que conjuntos grandes e descoordenados, pautando os temas que ganham visibilidade na opinião pública. Isso faz com que, mesmo pequenos, esses setores exerçam influência e impacto no debate público”, avalia Sabrina Almeida.

Por fim, é importante destacar que as principais vozes do movimento contra a vacinação de crianças são lideranças institucionais com poder de decisão e grande influência pública, como o presidente Bolsonaro, além de apoiadores em cargos públicos, como seus filhos e deputados mais próximos. E isso tem um peso fundamental. “Quando autoridades políticas são porta-vozes nessas controvérsias é evidente o poder de mobilização e construção de entendimentos sobre o tema. Ou seja, mesmo pequeno, esse grupo tem muita força social e política”, afirma a analista.

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