Dizer o que estamos passando para o cidadão amazonense é perda de tempo. Bobagem dizer que nenhum manauense jamais esquecerá esse 14 de janeiro de 2021. Não foi só o oxigênio que acabou. Acabaram também as palavras pra descrever o que se passa aqui. Então vou escrever esse texto para duas pessoas: para quem está fora e para a história.
Eu queria realmente poder dizer que esse foi o pior dia da pandemia ou mesmo da história do Amazonas. De coração. Mas se tem uma coisa marcante nesses tempos é a criatividade e a rapidez de como as coisas conseguem ficar ainda piores e macabras, então não me atrevo a fazer isso.
Sabe o que é pior? Estar malditamente certo. Em julho de 2020, neste texto, eu escrevi: “Agora é rezar para que esses números menos catastróficos durem. Porque se não durarem (por exemplo, se a imunidade não durar muito ou não proteger os recuperados), então que Deus nos ajude. Porque contar com nossos gestores, locais e nacionais já se mostrou ser suicídio”. Bem, não duraram. As orações continuam. E sim, foi suicídio. Ou melhor, genocídio.
Que fique registrado. Vá ao espelho e diga isso em voz alta: nesta quinta-feira, 14 de janeiro de 2021, pacientes morreram porque não tiveram oxigênio. Ar. Ainda não sabemos o número ao certo. Eu sou cinéfilo, mas não lembro de nenhuma franquia de terror de Holllywood tão macabra. Jogos Mortais era contra alguns indivíduos. Hitler odiava judeus. Aqui em Manaus, pessoas foram sufocadas até a morte porque alguns simplesmente não se importaram.
Fosse um acidente, uma explosão de depósito que simplesmente acabasse com nosso oxigênio ou mesmo a primeira onda, onde ninguém no mundo estava preparado pro que aconteceria, já seria crime. Fosse daqui cem anos, quando parte da memória dessa tragédia tivesse sido esquecida, ainda seria bestial. Mas é a mesma pandemia! A primeira onda foi em abril do ano passado! Não tem nem um ano de pandemia!
A comunidade científica cansou de alertar: não há imunidade coletiva sem vacina, Kit Covid simplesmente não funciona (a população do Amazonas já usa desde o começo), aglomerações seriam uma bomba-relógio, a circulação do vírus propicia mutações para ele espalhar melhor, se não contiver o vírus não salva a economia. Em novembro, quando as internações já ocuparam 77% das UTI’s, o governador do Amazonas flexibilizou as restrições, justamente às vésperas do final do ano, onde a população fatalmente iria se aglomerar. O que exatamente esperavam que fosse acontecer???
Aí criou-se a cultura de “pedir para a sociedade fazer sua parte”. Que parte? Se ninguém estava proibido de fazer festas, por que não deveriam fazer? Se o estado não assume o risco, por que o cidadão deve fazê-lo? Em qual país que tenha minimamente sério o governo permite aquilo que diz ser um risco de contágio?
Mesmo com testes, vacinas e monitoramento, o Japão cancelará as Olimpíadas e a União Europeia cancelará a Eurocopa se não tiverem absoluta certeza de que essas competições poderão ser seguras, mesmo ao custo de centenas de bilhões de dólares. E farão isso porque sabem que o custo em vidas será inaceitável. Mas o governo do Amazonas achou, por algum encanto do destino, que não haveria problema em liberar tudo sem testes, sem vacina e sem conhecer direito a natureza desse vírus. O resultado está aí.
“Você não vai falar de Bolsonaro”? Por que deveria? Bolsonaro é um genocida. Noticiamos seus absurdos diariamente. Em qualquer lugar sério do mundo, ele já estaria em uma penitenciária de segurança máxima ou no corredor da morte, com atores sendo escalados para a versão do cinema de um psicopata internacional. Não darei espaço pra suas falas porque é exatamente o que ele quer. Não gastarei palavras com ele porque simplesmente a vida é preciosa e curta demais pra ser gasta com um ser tão miserável. Que o Tribunal Penal Internacional cuide dele no seu devido tempo.
Sobre o que está acontecendo, ainda não achamos a resposta: foi uma mutação do vírus? Uma nova variante? A imunidade caiu? Os estudos sorológicos erraram? Não sabemos e não tenho certeza de que saberemos. Não culpe a imprensa ou os cientistas locais por isso. Sabemos fazer nosso trabalho. Mas sem a testagem e monitoramento global, estamos completamente cegos neste momento.
Temos um dos maiores centro de pesquisa em medicina tropical do mundo, alguns dos maiores infectologistas e epidemiologistas do país. Nenhum está no comitê científico do governo do Estado do Amazonas. Sabe por que? Porque ele simplesmente NÃO EXISTE! Provavelmente o mundo saberá o que acontece aqui antes de nós, porque investem em ciência e nós não.
Mas e se foi outra coisa? E se foi uma mutação social? Uma que baixou nossa humanidade e nos tornou mais canalhas, incensíveis, covardes e letais? Tendo a acreditar nessa possibilidade. Bolsonaro e Wilson Lima não são o problema. São a consequência do problema. E tivemos outros como eles aqui no estado ao longo de décadas.
Ambos são a consequência de uma sociedade que simplesmente não se importa. Não se importa com a vida, não se importa com a morte, não se importa com outros passando fome, não se importa em eleger genocidas ou incompetentes. Não haveria Bolsonaro ou Wilson Lima no poder se não existissem pessoas capazes de se aglomerar expondo suas vidas e de seus familiares no meio de uma pandemia de um vírus respiratório mortal. Alguém acha acaso Manaus ser uma das cidades que mais deu votos a Bolsonaro e uma das que mais mantém sua aprovação?
E não, não se trata de troco, karma, lei do retorno ou simplesmente castigo. É uma questão de causa e consequência. Uma sociedade podre, que abre mão da sua cidadania, que abre mão da sua humanidade, que briga por lucro quando há pessoas morrendo, que não entende o poder do seu voto elege aqueles que são iguais a ela. E a consequência do descaso é isso: pessoas morrendo asfixiadas porque alguns simplesmente não se importaram em ignorar as evidências. Manaus é simplesmente o abismo nos olhando de volta.
Bem-vindo a Manaus, a capital do inferno na Terra. Fique longe daqui.
Foto: Secretaria Municipal de Comunicação (Semcom)