A eleição de Arthur Lira (PP) e Rodrigo Pacheco (MDB) para as presidências da Câmara e do Senado trouxe preocupação que o alinhamento ideológico de ambos com o presidente Jair Bolsonaro (Sem Partido) possa colocar em perigos direitos fundamentais da população, além da própria Constituição em si. Pensando nisso, o Vocativo conversou com dois juristas sobre alguns dos principais temas.
A conclusão é que embora o presidente possa ter ganho alguma vantagem na condução de pautas do seu interesse, ainda há meios da sociedade civil resistir a possíveis investidas contra direitos ou ações autoritárias. Vale lembrar o fato de seu candidato ter conseguido uma votação expressiva não significa necessariamente que ela será mantida em todas as votações do Congresso no futuro.
“Não podemos deixar de considerar que o Presidente da Casa é apenas parte do processo formal para qualquer ato. Cabe a ele pautar (no caso das leis e PECs) e receber a denúncia, se presentes os requisitos formais – e não de mérito – exigidos (caso da denúncia do impeachment). A competência de deliberação será, em maioria das vezes, colegiada, por atuação da Casa e não apenas de seu presidente”, explica Sávio Chalita, Advogado. Mestre e Doutorando em Direito, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Além disso, o jurista afirma que há meios e mecanismos para os demais parlamentares atuarem de forma a controlar excessos e desvios de finalidade. Seja através de procedimentos previstos no próprio Regimento Interno da Casa, como através de atuação junto ao Poder Judiciário (no caso o Supremo Tribunal Federal – STF).
“É importante que exista um fino diálogo entre essas duas importantes figuras da República (Presidente da Câmara e o Presidente da República), mas desde que desta relação não exista intenção outra que não dar eficiência à gestão da coisa pública, do bem comum e de importantes projetos e programas de ordem social. É necessário cautela e observação das Casas (Câmara e Senado) se não existirão excessos ou mesmo desvio de finalidade desta boa relação”, explica.
Liberação de armas
Uma das principais pautas de campanha de Bolsonaro é a flexibilização do acesso à armas de fogo. Nos dois primeiros anos do seu mandato, o presidente tentou por meio de decretos aumentar a circulação delas, mas é certo que o presidente tentará fazê-lo por meio de leis.
“Pode acontecer, desde que seja pelo formato correto, que é por meio de lei. Decreto é um ato normativo inferior, tanto que o STF já havia decidido pela suspensão”, explica Daniel Lamounier, mestre em Direito Constitucional e especialista em Direitos Humanos e em Ciências Jurídico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra, em Portugal.
Um dos argumentos de Bolsonaro é atender o referendo (consulta popular) de outubro de 2005, quando a população se colocou contra o Artigo 35 do Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/2003), que proibia a comercialização de armas de fogo e de munições em todo o território nacional, excetuando apenas as autoridades que relacionou. Isso, contudo, é distorcido por Bolsonaro.
“[O voto contrário da população no referendo] não significa que população votou pela liberação do porte de armas, nem que deseja o porte. Apenas significa dizer que não é possível proibir a comercialização (e há grandes confusões acerca do que é porte, posse, atiradores desportivos, colecionadores e caçadores)”, explica Chalita.
Exclusão de direitos fundamentais
Outra preocupação diz respeito a direitos individuais, principalmente voltados a minorias, como a população LGBTQI+. É de conhecimento público que o presidente sempre teve discurso contrário a essa população, inclusive incitando violência física contra eles, como na fala em que diz que “filho gay é falta de porrada”. Por isso, há temor de que, controlando o Congresso, os direitos dessas pessoas.
No entanto, há na Constituição barreiras contra retrocessos. “Importante lembrar que a Constituição Federal relaciona as chamadas cláusulas pétreas. Nelas, estão os direitos e garantias individuais. É a chamada vedação ao retrocesso, onde PECs e PLs apenas podem tratar sobre estes temas se tiverem como resultado mais proteção, jamais disposições que venham a trazer como reflexo a fragilização desta proteção constitucional”, analisa Sávio Chalita.
“Pode até acontecer uma tentativa, mas nesse caso teremos uma flagrante inconstitucionalidade. A Constituição Federal deixa claro que não podemos reduzir direitos fundamentais. Liberdades fundamentais não poderão ser restringidas. Se uma tentativa acontecer, haverá judicialização e o STF, como já é uma norma consolidada, vai entender que a norma é inconstitucional”, afirma Daniel Lamounier.
Nova Constituinte
Outro temor de alguns setores da sociedade civil é de que um Congresso sob total controle de Bolsonaro possa ressuscitar uma discussão antiga de uma nova Constituição, que poderia retirar direitos e até as bases da democracia no Brasil. Vale lembrar que antes das eleições presidenciais de 2018, o agora vice-presidente Hamilton Mourão chegou a “sugerir” que uma nova fosse elaborada por uma “comissão de notáveis”.
No entanto, na avaliação dos juristas ouvidos pelo Vocativo, tal proposta seria descabida. “Uma nova constituinte só seria possível se houvesse uma ruptura, um golpe militar, uma quebra da democracia. Do contrário, é apenas uma especulação”, afirma Lamournier.
Além disso, usar a Constituição sob pretexto para destruir a própria Constituição por vontade do presidente ou de alguns parlamentares pode ser considerado, em si só, já configura crime grave. “Uma nova constituinte deve ser algo que nasça da vontade e manifestação popular. Qualquer movimento que tenha pretensão política de um grupo específico, conota à gravíssima conduta contrária do regime democrático de direito e são crimes de responsabilidade pela própria Constituição (art. 85, CF) e pela Lei do Impeachment (Lei 1079/1950)”, avalia Sávio Chalita.
O papel do STF e da Sociedade Civil
Diante da avaliação dos dois juristas ouvidos pelo Vocativo, a conclusão é que o futuro dos direitos e da estabilidade política do país também dependerá da mobilização da própria sociedade civil e da oposição no Congresso Nacional.
“O controle judicial (pelo STF, no caso do Presidente da República) apenas ocorrerá quando diante do descumprimento formal em suas atuações, violação à lei e à Constituição, ou mesmo o chamado desvio de finalidade (de modo geral, quando a atuação está baseada em finalidades outras que não os atos de gestão visando o bem comum). Por esta razão, a atuação do STF dependerá sempre de uma provocação. Seja de um parlamentar legitimado, do Procurador Geral da República, e outros legitimados de ações e procedimentos previstos em nosso sistema”, afirma Chalita.
“A sociedade civil precisa ficar atenta cuidando para que esses atos normativos não possam gerar uma inconstitucionalidade, até porque o judiciário não age de ofício (sem ser provocado). Alguém precisa propor uma ação para que ele julgue”, afirma.
Foto: Michel Jesus/Câmara dos Deputados