Por 312 votos a favor e 144 contra, o plenário da Câmara dos Deputados aprovou na madrugada desta quinta-feira (04/11/21), em primeiro turno, o texto-base do relator Hugo Motta (Republicanos-PB), da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 23/21, conhecida como PEC dos Precatórios.

A proposta limita o valor de despesas anuais com precatórios, corrige seus valores exclusivamente pela Taxa Selic e muda a forma de calcular o polêmico teto de gastos. O principal objetivo dessa proposta é financiar o chamado Auxílio Brasil, programa que promete substituir e aumentar o valor do Bolsa Família, mas que na verdade tem como principal meta melhorar a avaliação do presidente Jair Bolsonaro durante o ano das eleições.
Para concluir a votação da matéria, os deputados precisam analisar e votar os destaques apresentados pelos partidos, que podem ainda mudar trechos da proposta. A sessão poderá ocorrer ainda hoje. Mas para entender melhor essa questão, antes você precisa entender alguns termos. A começar pelo famigerado teto de gastos.
Teto de gastos
Encaminhada pelo governo Michel Temer ao Legislativo em 2016, a a PEC do Teto dos Gastos determinou que, a partir de 2018, as despesas federais só poderão aumentar de acordo com a inflação acumulada conforme o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).
A medida foi alvo de críticas inclusive de órgãos internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU) por congelar investimentos em educação e saúde. Pra se ter uma ideia, apenas nos dois primeiros anos de vigência da emenda (2018/2019), cerca de 10 bilhões de reais foram retirados da saúde pública.
Por conta desse congelamento, investimentos em programas sociais novos seriam praticamente impossíveis. Em 2020, abriu-se uma exceção com o chamado Orçamento de Guerra, que permitiu a criação do Auxílio Emergencial em função da pandemia.
No entanto, a melhora nos números da Covid-19, o avanço da vacinação e a retomada das atividades comerciais não melhoraram a economia como se esperava. Pelo contrário, os números de insegurança alimentar e a fome, além da informalidade, desemprego e inflação recordes, tornam urgente alguma medida de socorro aos mais pobres. Mas também há fatores políticos nesse caso.
Bolsonaro e as eleições
Nem o mais conservador analista político é capaz de negar que existe um fator eleitoral nessa questão. Com a piora na economia, desaprovação recorde e a recuperação dos direitos políticos do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, o atual presidente Jair Bolsonaro se viu na iminência de uma derrota nas eleições presidenciais de 2022.
Durante todo seu governo, o único momento em que Bolsonaro teve subida de aprovação foi justamente quando o Auxílio Emergencial de R$ 600,00 foi pago em 2020. Com sérias acusações feitas pela CPI da Pandemia e outros processos de peculato nos calcanhares, a reeleição é quase um fator de sobrevivência para o presidente. Daí a urgência em recriar um auxílio que lhe permita disputar com chances de vencer.
Mas de onde tirar o dinheiro para isso respeitando o teto de gastos? A ideia inicial seria usar recursos provenientes da Reforma do Imposto de Renda, que tramita no Senado ou até mesmo da Reforma Administrativa, analisada na Câmara. Mas ambas, por terem vários pontos impopulares, estão totalmente paradas no Congresso. Surgiu então, uma alternativa: precatórios.
O que são precatórios?
Precatórios são dívidas do governo com sentença judicial definitiva – ou seja, não cabe mais recurso e elas precisam ser pagas – podendo ser em relação a questões tributárias, salariais ou qualquer outra causa em que o poder público seja o derrotado. Em julho deste ano, o Supremo Tribunal Federal decidiu que elas devem ser pagas de qualquer maneira até 2022.
Com isso, o governo Bolsonaro ficou em uma encruzilhada: não poderia furar o teto de gastos (pelo menos não oficialmente), não poderia contar com as reformas e não poderia recorrer a outra fonte, pois só restaria os precatórios. Quem poderia ajudar? Foi aí que entrou em campo o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL).
Como sempre, Arthur Lira
Por meses, os presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco, e da Câmara, Arthur Lira e o ministro da Economia, Paulo Guedes, quebraram a cabeça tentando achar uma solução para esse impasse. Mas, quando percebeu que a pauta não avançaria, Lira partiu para o tudo ou nada.
Lira conversou pessoalmente com os governadores da Bahia, de Pernambuco e do Ceará para atender as demandas de priorizar o pagamento de precatórios relacionados aos estados, negociou com líderes de oposição, conseguindo até mesmo votos de partidos como o PDT de Ciro Gomes e o PSB de Eduardo Molon.
Por orientação de Lira, a Mesa Diretoraabriu uma exceção e permitiu aos parlamentares que estão fora do país em missão oficial poderem votar remotamente, mesmo com a determinação de que a deliberação seja feita apenas presencialmente em vigor desde o último dia 26. Deu certo e o projeto foi aprovado nesta quarta.
O que vai mudar?
De acordo com o texto-base aprovado, os precatórios para o pagamento de dívidas da União relativas ao antigo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), atual Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), deverão ser pagos em três anos, sendo 40% no primeiro ano, 30% no segundo e 30% no terceiro ano.
A redação aprovada hoje engloba o texto da comissão especial segundo o qual o limite das despesas com precatórios valerá até o fim do regime de teto de gastos (2036). Para o próximo ano, esse limite será encontrado com a aplicação do IPCA acumulado ao valor pago em 2016 (R$ 19,6 bilhões). A estimativa é que o teto seja de quase R$ 40 bilhões em 2022. Pelas regras atuais, dados do governo indicam um pagamento com precatórios de R$ 89 bilhões em 2022, frente aos R$ 54,7 bilhões de 2021.
Segundo nota da Consultoria de Orçamento da Câmara, do total de precatórios previstos para pagamento em 2022, 26% (R$ 16,2 bilhões) se referem a causas ganhas por quatro estados (Bahia, Ceará, Pernambuco e Amazonas) contra a União relativas a cálculos do antigo Fundef. Parte dos recursos deve (ou deveria) custear abonos a professores desses estados. Segundo o secretário especial do Tesouro e Orçamento, Esteves Colnago, cerca de R$ 50 bilhões desse dinheiro devem ir para o programa Auxílio Brasil e R$ 24 bilhões para ajustar os benefícios vinculados ao salário mínimo.
Professores
A proposta, no entanto, foi criticada pelo deputado Professor Israel Batista (PV-DF). “Estamos aqui trazendo uma profunda insegurança jurídica para o Brasil. Precatório é decisão judicial sobre pagamento. Eu não consigo entender a vantagem de dividirmos o pagamento dos precatórios dos professores em três vezes, se a Justiça manda pagar em uma vez”, afirmou.
O líder do PT, deputado Bohn Gass (PT-RS), também criticou a proposta. “Queremos que o professor receba integralmente o que lhe é devido, que o Município e os Estados tenham o apoio e que não se precise dar calote, muito menos, fazer chantagem irresponsável e mentir para a população dizendo que, se esse projeto não for aprovado, não haverá dinheiro para programas sociais”, disse.
O que ninguém está falando
Seria muita ingenuidade acreditar que esse apoio do chamado Centrão, encabeçado por Lira, veio de graça, por amor aos pobres ou afinidade ao governo Bolsonaro. Para o deputado Alessandro Molon (PSB-RJ), líder da oposição na Câmara, aprovar a PEC significaria dar R$ 20 bilhões ao chamado “orçamento secreto” do governo, que beneficia aliados de sua base no Congresso. “o que se quer aqui não é o Auxílio, o que eles estão querendo é aprovar a PEC para sobrar dinheiro para o governo para uma série de outras coisas e sobrar R$ 20 bilhões para o orçamento secreto”, disse.
Uma forma de fazer isso é a emenda de relator-geral (RP9) do Orçamento. A RP9 foi criado por iniciativa do Congresso Nacional em 2019 e diz basicamente que os relatores de emendas parlamentares têm direito a destinar uma parte das verbas dessa emenda da maneira que quiserem, caracterizadas pela pouca ou nenhuma transparência na sua execução. Há também a possibilidade ao aumento na verba do fundo eleitoral com a votação dos destaques.
Resta saber agora se toda essa engenharia do governo Bolsonaro com o Centrão vai ter algum resultado na prática. Há economistas que afirmam que o desrespeito ao teto de gastos pode impactar negativamente o mercado, fazendo com que a inflação cresça ainda mais, anulando qualquer efeito que o Auxílio Brasil possa trazer.