Opinião

Editorial: Apesar de tudo que fizemos, ainda somos os mesmos

Esquecer preceitos básicos do jornalismo e ignorar contextos locais é a receita certa para cria uma narrativa totalmente enviesada. E quando isso encontra grupos políticos desprovidos de responsabilidade, o resultado é o flashback da Lava Jato que vimos esta semana

Na faculdade de jornalismo, uma das atividades mais comuns são os estudos de caso. Vez por outra, os professores relembram momentos históricos da profissão, como os casos Watergate, Spotlight, Wikileaks, os Pandora Pappers e a Vaza Jato. Mas também há espaço para revisitar os folclóricos e também os erros trágicos, como o caso da Escola Base, em São Paulo.

Essa semana, os alunos de jornalismo do Brasil puderam assistir um caso desse último tipo acontecendo ao vivo: a “denúncia” da visita da ativista Luciane Barbosa Farias – supostamente ligada ao grupo criminoso conhecido como Comando Vermelho no Amazonas – ao Ministério da Justiça. O fato causou verdadeiro frenesi na opinião pública brasileira e, é claro, orgasmos de fúria na extrema direita, tanto a assumida quanto a enrustida.

Há, de fato, um escândalo?

Tirando a fumaça e o barulho dessa história, temos uma pessoa, que no momento da visita, segundo brilhante apuração do jornalista Leandro Demori, havia sido inocentada por falta de provas (fato noticiado pela mídia local, inclusive) da acusação de tráfico e associação para o tráfico de drogas. Ponto.

Vale ressaltar que a única indicação desse envolvimento é uma afirmação em off de uma fonte da Polícia Civil amazonense. O que por si só já viola um princípio básico do jornalismo: salvo seja para proteção de testemunhas ou pessoas em risco, não existe declaração em off. Existe denúncia em off, a qual você apura e, em se confirmando com outros elementos, publica.

Outra “acusação” feita contra Luciane era o fato de ser casada com um suposto traficante de uma facção do Estado. Bem, isso, até esta manhã, não era crime. Nos últimos meses, ela fazia parte de uma ONG e se candidatou para uma vaga em um comitê que tem como função fiscalizar o modo como o poder público atua em presídios no Amazonas. Por isso ela havia sido indicada por esse comitê ligado ao governo do estado para a audiência em Brasília.

Visita não foi ilegal

Do ponto vista legal, não havia o que ser feito, nem pelo governo federal, nem pelo estadual. Afinal, se a Constituição Federal garante que ninguém pode ser considerado culpado até o final do devido processo e a própria garante direito de ir e vir a todo cidadão, não haveria como “barrar” a indicação. Luciane poderia ir a aonde quisesse, salvo alguma determinação judicial em contrário, o que, até o momento, não se tem notícia.

A professora Maíra Fernandes, convidada da FGV Direito Rio, explicou que ainda que as acusações contra Luciane de envolvimento com a facção venham a se confirmar, no momento da audiência em Brasília, nada poderia ser feito para impedir sua participação.

“Não me parece que ninguém possa impedir a entrada de uma pessoa ainda não condenada pelo princípio da presunção de inocência. E todo mundo é inocente até que se prove o contrário. Então essa presunção de inocência permite que a pessoa em liberdade e pratique todos os atos em direito admitidos, exceto os que tiverem alguma restrição”, afirmou a jurista.

Fernandes explicou ainda que uma pessoa pode responder um processo em liberdade, mas com medidas cautelares, como não frequentar determinados lugares, desde que o juiz especifique como. “Mas se ela não tiver nenhuma restrição, ela estiver em liberdade plena. E, de fato, vale a presunção de inocência”, orienta.

Ora, se não há crime uma pessoa inocentada viajar e não há provas concretas de que ela, de fato, faça parte do Comando Vermelho, concordamos que não há motivo para escândalo, certo? Mas então por que tanta polêmica? Porque proposital ou não, há desgaste político.

Uma aula de antijornalismo

Só há um único registro sobre Luciane em veículo de comunicação antes dessa semana. Precisamente em 26 de janeiro de 2022, em matéria que fala – adivinhem só – da sua absolvição. Conforme a justiça, a denúncia feita pelo Ministério Público do Amazonas foi julgada improcedente por falta de provas. Importante: Não há qualquer menção a ela com a alcunha “Dama do Tráfico”. Zero, em parte alguma. Busque você mesmo, se quiser.

A título de curiosidade, ao longo da semana, perguntei para quatro colegas jornalistas locais com décadas de experiência em cobertura de policial no Amazonas. Todos, absolutamente todos, responderam exatamente a mesma coisa quando perguntados sobre a suposta “Dama do Tráfico”: “nunca ouvi falar dela”. Um colega lembrou ainda que a cadeia hierárquica do Comando Vermelho (e em geral das facções) muda com o tempo.

Ora, se eu vou trabalhar uma pauta sobre uma região na qual não resido, é primário conhecer minimamente o contexto dela antes de produzir qualquer coisa. Fosse um nortista escalado para tratar das milícias no Rio de Janeiro (algo nunca visto), há uma lista de repórteres que eu deveria consultar pra me situar. Quando é um profissional estrangeiro, é o que acontece. No nosso caso, no entanto, não aconteceu. E infelizmente essa não é a primeira vez.

É extremamente comum que grandes veículos de outras regiões (de mídia tradicional ou independente) percam dados, apontem erros onde não existem, ataquem figuras locais, noticiem coisas já publicadas em veículos locais (com o Vocativo já aconteceu várias vezes) ou ataquem reputações simplesmente porque não se preocupam em ouvir profissionais da região. É obrigatório? Não. Tal qual repórteres estrangeiros. Mas evita fazer bobagem.

Também é importante consultar os repórteres locais sempre que possível para checar a segurança das fontes. Com todo o respeito, mas confiar cega e exclusivamente em afirmações de membros da Segurança Pública do Amazonas, com casos recentes de quadrilhas infiltradas no comando do órgão é, no mínimo, imprudência.

Oportunismo político

É muito estranho que a reportagem do Estadão não se tenha dado ao trabalho de consultar a fonte da indicação para o evento em Brasília, ou seja, a Secretaria de Estado de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania (Sejusc). Isso colocaria em cheque a principal tese levantada com a publicação: a de que o governo federal poderia manter relações com o Comando Vermelho.

Ora, se o governo federal pode ser acusado de ligações com uma facção porque uma pessoa, que hipoteticamente faria parte dele, visitou uma das suas instalações, o mesmo valeria para o governo do Amazonas e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), como de fato aconteceu.

O fato é que esse simples “descuido” causou completa e total deturpação da notícia, dando a entender que o único local público visitado pela ativista fora Brasília, o que não é verdade. E a menos que o Comando Vermelho não represente ameaça no Amazonas e no Legislativo, todos os locais onde Luciane passou deveriam, obrigatoriamente, ser investigados. Foi um erro crasso de apuração. Crasso até demais.

Com as redes sociais descontroladas e um Congresso dominado pelo fisiologismo e o extremismo, foi o caldo inflamável perfeito. Políticos desprovidos de responsabilidade em todo país começaram a tecer toda sorte de teorias, acusações e afirmativas sobre o caso, sem se importar com as consequências. Agora, com a imprensa independente atuando na apuração e novos fatos surgindo, os mesmos inquisidores desapareceram, constrangidos. Alguns com medo de processos.

Se os Códigos de Ética da Câmara e do Senado fossem seguidos à risca, haveria cassações em massa. Em um país sério, acusar levianamente pessoas, publicar mensagens insinuando possuir informações sigilosas e escolher sob contra qual ente da federação vai fiscalizar configura quebra de decoro. Infelizmente sabemos que não vai acontecer.

Uma ameaça silenciosa

Sabe o que é pior nessa história toda? Há um ponto muito importante que está passando despercebido e merecia, de fato, uma CPMI: até hoje, ninguém parou pra pensar em como surgiu essa história. Se a segurança pública do Amazonas trouxer elementos que comprovem que  Luciane seja, de fato, membro de facção e a ONG na qual ela atua seja financiada pelo tráfico, caberia uma profunda investigação, mas não de um órgão em si, mas de toda a administração pública.

Afinal, em se confirmada a tese de que o crime organizado está desenvolvendo personalidades jurídicas para transitar livremente nas sedes do poder pelo país, qual será o seu real alcance? Quais outros setores da sociedade estariam comprometidos? Elas já teriam poder de influência dentro da política, por exemplo?

Agora, apesar dessa urgência, qualquer investigação séria com esse atual Congresso é impossível. Caso venha a acontecer uma CPMI, será o mesmo show de bizarrices e declarações irresponsáveis que vimos essa semana. E muito provavelmente teria o mesmo tipo de cobertura com graves erros de apuração e que favorece a construção prévia de uma narrativa enviesada.

Hora de decidir

Entre 2014 e 2020, esse tipo de jornalismo mais preocupado com o engajamento e a audiência, que atropelou todos os princípios éticos e normas de direitos humanos fez da operação Lava Jato o trampolim para a extrema direita no Brasil. Como ato final, tivemos o estabelecimento de um grupo que persegue, agride, espiona e assediava judicialmente jornalistas.

Esse mesmo grupo por pouco, muito pouco, não efetivou um golpe de Estado no Brasil em janeiro deste ano. Tivesse tido êxito, muitos de nós hoje não estaríamos em liberdade. O próprio Estadão que denunciou o Orçamento Secreto, poderia ser fechado. Muitos poderiam estar exilados ou mortos.

O mais curioso é que, nessa hipótese, esse grupo que tanto compartilhou essa reportagem sobre Luciane em Brasília seria (será, na verdade) o mesmo a perseguir o próprio repórter se, amanhã, sua reportagem atingir um político de extrema direita.

Não se trata de apoiar esquerda ou direita, Lula ou Bolsonaro. Se trata de encarar um fato: em tempos de extrema direita, nosso trabalho precisa ser mais preciso, cuidadoso e ético do que nunca. A democracia e o estado democrático de direito ainda estão sob forte ameaça no Brasil. Se o jornalismo não refletir esses ideais na sua essência, seremos as próprias armas a nos destruir.

Os grandes veículos de imprensa do país fazem de tudo para reforçar o mito da imparcialidade e da isenção dos seus trabalhos jornalísticos. Bem, a julgar pela forma como trataram direitos humanos esta semana, colocando alcunhas e condenando pessoas sem o devido processo legal, estão falhando miseravelmente. E depois dos anos tenebrosos da Lava Jato, só consigo pensar nessa hora no clássico refrão de “Como nossos pais”:

Minha dor é perceber
Que apesar de termos
Feito tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos


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3 comentários

  1. Parabéns, Fred Santana, pela abordagem fundamental. No grosso, nós, jornalistas, andamos para trás ao tempo da Acta Diurna Romana, em tempo de internet e das redes na grande rede. Muito grata por seu texto de luz.

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