O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) voltou ao Brasil, mais especificamente para Brasília nesta quinta-feira (30/03/2023), vindo de Orlando, nos Estados Unidos. Agora pare, releia essa frase e pergunte a si mesmo qual a relevância dessa “notícia” na sua vida. Exatamente. Zero.
Olhando friamente, não há qualquer diferença desse registro para uma viagem do ex-presidentes Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso e Dilma Rousseff. Mas não há um veículo de grande circulação nacional que não dê ampla divulgação desse fato irrelevante. O problema é que, dentro do contexto delicado que o Brasil vive, normalizar uma figura como Bolsonaro é ajudar a colocar em risco a nossa democracia.
Cobertura de popstar
Alguns dos mais respeitados colegas jornalistas do país defendem esse tipo de registro sobre Bolsonaro porque ele se trata de uma figura pública, uma liderança política e ele não pode cair no ostracismo por conta de todas as investigações sobre possíveis crimes.
Pra começar, o fato dele ser uma liderança não justifica essa cobertura de popstar. Lula, ao deixar a presidência em 2010 era um líder extremamente popular e ficou longe dos noticiários até a Operação Lava Jato. FHC, Collor e Dilma também sumiram dos jornais.
A própria classificação de liderança de Bolsonaro também é questionável, já que até 2016 ele era um deputado inexpressivo que foi catapultado ao centro da política nacional, dentre outros motivos, pela excessiva exposição midiática. E a julgar pela baixíssima quantidade de apoiadores em Brasília na recepção de hoje, o tamanho dessa liderança também parece superdimensionada.
Contas a prestar
É preciso deixar bem claro: todos sabemos que Bolsonaro cometeu crimes. Isso porque ele nunca fez questão de esconder. O único motivo para não estar nos tribunais e ter se mantido no cargo por quatro anos foi ter feito um acordo com o setor mais fisiológico do Congresso e ter posto na Procuradoria da República uma figura decorativa. Com as instituições minimamente independentes, ele estará preso em alguns meses e inelegível para cargos públicos.
O grande problema é que, a cada dia que Bolsonaro passeia como se fosse uma figura inocente, um simples ex-presidente, a impunidade reforça o seu discurso e de seus apoiadores. Isso vai fortalecendo os mais fanáticos e abrindo caminho para que ocupem mais e mais cargos públicos em futuras eleições.
E o pior: torna a conduta que motivou os atos terroristas de Brasília aceitável e a investigação de seus crimes, mais difícil, porque emponderam o bolsonarismo que existe em instituições como o judiciário e a Polícia Federal. Se nada for feito e os ataques de 08 de janeiro se tornarem simples processos contra peixes pequenos, outros acontecerão, com ainda mais violência. Já falei em outro texto que, sempre que esgarçada, a democracia se torna mais frágil. Um dia, ela quebrará.
O papel da imprensa
Que fique claro: Bolsonaro não pode ser esquecido. Mas uma coisa é cobrir o escândalo das jóias, a possível participação de Bolsonaro nos atentados de 08 de janeiro ou todos os crimes de responsabilidade cometidos por ele ao longo de seu governo, especialmente no que diz respeito à condução da crise do coronavírus no Brasil ou da tentativa de genocídio contra os Yanomamis.
Mas acontece que o que estamos vendo não é isso. O que estamos vendo é uma cobertura que registra seus passos como o de uma celebridade que não tem contas a prestar com a justiça. Não lembro do Coldplay ter tido o mesmo espaço no noticiário.
O ponto aqui é o comportamento da imprensa brasileira em fechar os olhos para este contexto na qual ela será a primeira a cair. O ex-presidente nunca escondeu que um dos seus maiores inimigos é a imprensa livre. Seu eventual retorno, possivelmente fortalecido, seria uma gravíssima ameaça para toda a categoria. Audiência e engajamento é parte do nosso trabalho, mas não pode estar acima da nossa sobrevivência. Jornalismo kamikaze vai destruir todos nós.