A atuação do governo Bolsonaro foi decisiva para que a pandemia não fosse enfrentada adequadamente no Brasil e para uma série de violações de direitos humanos ao longo de 2021. Essas são as principais conclusões do Anistia Internacional Informe 2021/22: O estado dos Direitos Humanos no Mundo, apresentado nesta terça-feira (29/03/2022).
Segundo o documento, a população brasileira atravessou um ano repleto de violações de direitos humanos, não somente na crise sanitária, mas também no que diz respeito à precarização econômica e social. Ele afirma ainda que são graves os índices de insegurança alimentar, desemprego, falta de moradia e de saneamento, violência contra quem defende direitos humanos, uso excessivo de força policial, destruição do meio ambiente, entre outros. Os grupos historicamente discriminados são, de longe, os mais afetados.
A Anistia Internacional recorda que, de acordo com a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19, as ações do governo federal para aquisição das vacinas foram descoordenadas, ineficientes e sem comprometimento com as evidências e comprovações científicas. A negligência nas negociações com as empresas farmacêuticas e com a iniciativa COVAX atrasou a implementação do plano nacional de vacinação. Vale lembrar que o Brasil teve o segundo mais alto número mundial de mortos pela Covid-19 (615 mil óbitos até dezembro de 2021).
Segundo o Grupo Alerta, formado pela Anistia Internacional Brasil e outras organizações, 120 mil mortes poderiam ter sido evitadas até março de 2021 com coordenação estratégica e adequada. Mas o que se presenciou foi precariedade na testagem, no monitoramento das taxas de infecção, na distribuição de medicamentos e insumos hospitalares e na organização dos leitos de internação e unidades de terapia intensiva. Em janeiro de 2021, a falta de oxigênio em hospitais sufocou e matou milhares de pessoas no estado do Amazonas.
“O ano de 2021 deveria ter sido de uma recuperação justa. O que vimos foi o agravamento das desigualdades e um cenário de instabilidade para as populações que já sofriam antes da pandemia. Temos um trabalho de muitos anos pela frente para recuperar o que perdemos. A população está sem seus direitos. Está com fome, sem emprego, sem acesso à educação, sem uma renda que garanta o mínimo, sem proteção contra violência e inúmeras violações de direitos humano”, afirma Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil.
Insegurança alimentar
Múltiplas crises tomaram conta do país na esteira da má gestão da Covid-19. Mais da metade da população brasileira enfrentou insegurança alimentar em algum nível. A insegurança alimentar grave, ou seja, a fome, afetou 9% dos domicílios pesquisados. São, aproximadamente, 19 milhões de pessoas.
Os dados são de um estudo publicado em 2021 pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar. Mais uma vez, a parcela mais vulnerabilizada sofreu mais: entre os agricultores familiares e as comunidades quilombolas, indígenas e ribeirinhas, a proporção de domicílios atingidos subiu para 12%. Ou seja: quem tradicionalmente produz alimento foi mais atingido pela fome.
A falta de acesso a alimentos se relaciona, também, com a falta de acesso à renda. A redução do Auxílio Emergencial pela metade levou mais pessoas a viver na pobreza, segundo um estudo da Universidade de São Paulo. As mulheres negras foram as mais afetadas: 38% e 12,3% viviam em situação de pobreza ou de pobreza extrema, respectivamente.
O empobrecimento da população afastou ainda mais crianças e jovens das escolas — num contexto de ensino remoto, muitos não tinham acesso às tecnologias necessárias para continuar estudando. O resultado é evidente: em 2021, o Exame Nacional do Ensino Médio, principal forma de ingresso nas instituições de ensino superior, registrou o menor número de candidatos em 13 anos.
Violência
O relatório também aponta estatísticas que retratam a realidade perversa da violência policial. Em 2020, agentes do estado mataram 6.416 pessoas. Mais da metade das vítimas eram jovens negros. Em 6 de maio de 2021, uma operação policial na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, resultou na maior chacina dos últimos anos. Foram mortos 27 moradores e um policial.
Imagens e investigações preliminares apontaram indícios de execuções sumárias e adulteração de provas nos locais dos crimes. Dois policiais estão afastados por ordem judicial de suas funções em decorrência das investigações a respeito da morte de uma das 26 vítimas. A acusação é de homicídio e fraude processual.
De acordo com as estatísticas analisadas pelo Informe, o Brasil é o país onde mais se mata pessoas trans no mundo, 125 pessoas, seguido pelo México (65), Estados Unidos (53) e Colômbia (25). A Associação Nacional de Travestis e Transexuais informou que 80 pessoas transgênero foram mortas no Brasil somente no primeiro semestre de 2021. Além disso, agressões físicas, ameaças, discriminação e marginalização social alimentaram um ciclo de violência que impediu as pessoas LGBTI de usufruírem de seus direitos plenamente e com segurança.
Outros índices apresentados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública também são alarmantes. O número de estupros nos primeiros seis meses de 2021 foi 8,3% maior do que no mesmo período de 2020. Entre janeiro e junho de 2021, 666 mulheres foram vítimas de feminicídio, o maior número desde o início dos registros, em 2017.
O Brasil também é o terceiro país onde mais se mata defensoras e defensores de direitos humanos, segundo dados da Front Line Defenders. Ficamos atrás de Colômbia e México, respectivamente primeiro e segundo lugar mais perigoso para defensores de direitos humanos no mundo. E quem deveria estar relatando tantas nefastas violações — a imprensa, por exemplo — está diante de grandes empecilhos. Em 2021, a organização Human Rights Watch identificou 176 contas de jornalistas, congressistas, influenciadores, meios de comunicação e ONGs (inclusive a Anistia Internacional Brasil) bloqueadas nas redes sociais do presidente Jair Bolsonaro.
Indígenas
O Informe analisou ainda os últimos dados da Comissão Pastoral da Terra, que indicam um número recorde de conflitos rurais registrados em 2020. As invasões de terras, que ocorreram a despeito da legislação que regulamenta territórios e direitos, aumentaram 102% entre 2019 e 2020. Quem mais defende a terra, sofreu mais: 71% das famílias afetadas eram indígenas. Entre janeiro e novembro de 2021, 26 pessoas foram mortas em situações de conflitos rurais, um aumento de 30% se comparado com 2020. Dessas pessoas, oito eram indígenas.
Paralelamente, mais de 13 mil km² de floresta foram derrubados na Amazônia brasileira em 2021, a maior área devastada desde 2006. O dado é do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Em 2021, o bioma teve a maior taxa de desmatamento para o mês de agosto em 10 anos. O dado é da ONG Imazon.
“O Brasil vive uma crise de direitos humanos nas cidades, nos campos, nas florestas e nas águas. Tantas violações estão matando brasileiros e brasileiras: de fome, de negligência, pela falta de acesso aos serviços básicos de saúde, pelo crescimento da violência e o aprofundamento das desigualdades. Apresentamos esses problemas para que as autoridades brasileiras mudem seus modos de agir e assumam seus deveres de garantir os direitos de todas e todas”, aponta Jurema Werneck.