O Ministério da Defesa divulgou neste dia 31 de março de 2022 uma Ordem do Dia alusiva ao 31 de março de 1964, data da instauração da ditadura militar no Brasil. O texto classifica o período como um “marco histórico da evolução política brasileira, pois refletiu os anseios e as aspirações da população da época”. Autoridades e organizações da sociedade civil reagiram e repudiaram a nota.
Os militares alegaram que “nos anos seguintes ao dia 31 de março de 1964, a sociedade brasileira conduziu um período de estabilização, de segurança, de crescimento econômico e de amadurecimento político, que resultou no restabelecimento da paz no país, no fortalecimento da democracia, na ascensão do Brasil no concerto das nações e na aprovação da anistia ampla, geral e irrestrita pelo Congresso Nacional”, diz a Ordem do Dia.
Como era de se esperar, o presidente da República, Jair Bolsonaro, defendeu o período. De acordo com ele, todos tinham o direito de ir e vir, sair do Brasil, trabalhar, constituir família e estudar, o que não é verdade. Pelo Twitter, o vice-presidente Hamilton Mourão disse que “em 31 de março de 1964 a Nação salvou a si mesma!”.
História
A verdade, no entanto, é outra. Na madrugada do dia 31 de março de 1964, um golpe militar foi deflagrado contra o governo legalmente constituído de João Goulart. Os militares envolvidos no golpe de 1964 justificaram sua ação afirmando que o objetivo era restaurar a disciplina e a hierarquia nas Forças Armadas e deter a “ameaça comunista” que, segundo eles, pairava sobre o Brasil.
Os militares que assumiram o poder em 1964 acreditavam que o regime democrático que vigorara no Brasil desde o fim da Segunda Guerra Mundial havia se mostrado incapaz de deter a “ameaça comunista”. Com o golpe, deu-se início à implantação de um regime político marcado pelo “autoritarismo”, isto é, um regime político que privilegiava a autoridade do Estado em relação às liberdades individuais, e o Poder Executivo em detrimento dos poderes Legislativo e Judiciário.
Nos primeiros dias após o golpe, uma violenta repressão atingiu os setores politicamente mais mobilizados à esquerda no espectro político, como por exemplo o CGT, a União Nacional dos Estudantes (UNE), as Ligas Camponesas e grupos católicos como a Juventude Universitária Católica (JUC) e a Ação Popular (AP). Milhares de pessoas foram presas de modo irregular, e a ocorrência de casos de tortura foi comum, especialmente no Nordeste. O líder comunista Gregório Bezerra, por exemplo, foi amarrado e arrastado pelas ruas de Recife.
Segundo relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), graves violações de direitos humanos foram praticadas entre 1964 e 1985. Ao menos 434 mortes e desaparecimentos foram confirmados pelo órgão criado pela Lei 12528/2011 e que funcionou entre 2012 e 2014, durante o governo Dilma Rouseff.
Manifestações
Um documento assinado por 89 organizações da sociedade civil – entre elas, Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Instituto Vladimir Herzog, Transparência Brasil, e WWF-Brasil – repudiou o que foram consideradas “recorrentes tentativas de se reescrever a história brasileira”. “A censura imposta a estudantes, jornalistas, artistas e intelectuais deixou cicatrizes profundas nas instituições e na sociedade brasileiras”, destaca o texto.
Políticos também se manifestaram sobre a data. Pelo Twitter, o presidente do Congresso Nacional e do Senado Federal, Rodrigo Pacheco, disse que “o norte de uma nação deve ser sempre o da estrita obediência à sua Constituição”, cujo teor, segundo ele, “rechaça flertes, mesmo que velados, com posições autoritárias e que ferem as liberdades”. Já o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP) se manteve em silêncio.
Luís Roberto Barroso, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), destacou, também pelo Twitter, que, durante o regime militar, as eleições foram canceladas, o Congresso foi fechado, parlamentares e professores foram cassados e estudantes proibidos de se organizarem.
“Você sabia que muitos brasileiros foram para o exílio para escapar da violência política? Essa é a história”, disse. Segundo Barroso, desde 1988, o Brasil experimentou o mais longo período de estabilidade institucional e foi nesse período que todos os indicadores sociais do país melhoraram.
Liminar
O Ministério Público Federal (MPF) reiterou nsta quinta-feira (31) um pedido de liminar, realizado em fevereiro, para que a União deixe de fazer publicações em celebração ao 31 de março de 1964. Além disso, pede a remoção imediata da Ordem do Dia publicada no Ministério da Defesa. “Para o MPF, tal postura expõe de forma drástica os fundamentos da República Federativa do Brasil e merece responsabilização daqueles que contribuíram para isso”.
Comentário
Mas mais do que cínica, mentirosa e falaciosa, essa narrativa é dramaticamente preocupante, no momento em que a democracia do Brasil está sob maior risco desde a redemocratização. O presidente Jair Bolsonaro nunca escondeu sua afeição pelo autoritarismo e pelo golpe militar.
Fica a pergunta: em 1964, militares deram um golpe de estado porque dizem ter visto uma ameaça comunista no horizonte. Hoje, o líder nas pesquisas de opinião para a presidência é uma figura da esquerda. O que farão os militares se o “seu candidato” não vencer? Vão enxergar uma nova ameaça comunista e implementar um novo regime?
Ao fazer essa declaração, as forças armadas assumem o mesmo lado do presidente Bolsonaro. E isso é inaceitável em uma democracia. Militares são uma força de estado, não de um governo. E com essa declaração, as forças armadas cospem na cara das famílias das vítimas e das próprias vítimas do regime. E cospem na cara da democracia.
Com informações da FGV e Agência Brasil