Amazônia

Amazonas: o lugar perfeito para o surgimento da próxima pandemia

Invasão crescente do maior bioma do planeta, desmatamento, caça e tráfico de animais e fiscalização ambiental desmontada. Ingredientes que fazem do Amazonas um sério candidato para o surgimento da próxima pandemia

H1N1, ebola, dengue, zika, chikungunya, malária, febre amarela, HIV, SARS, MERS e Covid-19. Parece a música “O Pulso” dos Titãs, mas são apenas alguns exemplos de doenças mortais que causaram surtos, epidemias e pandemias, estão aí até hoje e surgiram do contato do homem com a natureza.

Atualmente, a sua vida está de cabeça pra baixo por causa da última. Mas não se engane, há outras à espreita que podem surgir a qualquer momento e causar ainda mais estrago. E por uma série de razões que o Vocativo vai listar à seguir, o local mais propício para que isso aconteça é justamente o Amazonas.

Caos previsível

A pandemia atual pode ter pego você e muitos governos do mundo de surpresa, mas não a comunidade científica internacional. Pra falar a verdade, não faltaram alertas, desde estudos científicos, passando por palestras e discursos de figuras como o bilionário norte-americano Bill Gates e o ex-presidente dos EUA, Barack Obama, até documentários científicos da Netflix.

Dentre todo esse material, o mais importantes é o relatório feito pelo Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS, em inglês) da Universidade Georgetown, nos EUA, em outubro de 2019, um mês antes do primeiro caso relatado de Covid-19 em Wuhan, na China. Nele, havia um alerta sobre a iminência do surgimento de um novo vírus semelhante ao que causou os surtos de SARS (2002) e MERS (2013), ambos na Ásia.

A essa altura você deve estar se perguntando o que isso tem a ver conosco, com o Brasil e com o Amazonas. Mas antes de responder essa pergunta, precisamos entender como pandemias e surtos acontecem. Ficará mais simples entender o risco que corremos.

Como surge uma pandemia?

No último dia 15 de abril, a Organização Mundial de Saúde (OMS), assim como outras agências internacionais, recomendaram a suspensão, com urgência, da venda de mamíferos vivos em mercados. Segundo a OMS, a medida é necessária, já que mais de 70% dos vírus e patógenos que provocam doenças infecciosas em humanos, provêm de espécies selvagens.

As orientações atentam para o fato de os animais serem abatidos e limpos em áreas abertas dos mercados, que podem ser contaminadas por fluidos corporais e outros rejeitos. Isso eleva o risco de transmissão de patógenos para as pessoas e também para outros animais no local. No ano passado, a China baniu o comércio de animais selvagens para o consumo humano. No entanto, brechas na lei permitem a criação de espécies que podem abrigar doenças.

Mas o surgimento de novas doenças e vírus não acontece apenas em mercados de animais vivos. Por concentrarem grande quantidade de pessoas e animais variados, esses locais acabam gerando maior alerta, mas qualquer interação entre animais pode favorecer o surgimento de um vírus capaz de nos infectar e causar doenças.

Por precisarem de um hospedeiro para sobreviver, os vírus estão sempre se adaptando e migrando de uma espécie para outra. O nome desse salto é chamado spillover (guarde isso). A grande pandemia de H1N1 em 1918 surgiu da interação de humanos com porcos, provavelmente no Kansas (EUA) durante a Primeira Guerra Mundial. A de 2009 parece ter começado em fazendas de criação de porcos no México. A pandemia de HIV, que enfrentamos até hoje, veio da interação com macacos. No caso do novo coronavírus (SARS-COV-2), acredita-se que ele seja original de morcegos, tenha saltado para um animal intermediário (porco ou pangolim, ainda não se sabe) e chegado aos humanos.

“Quanto mais frequente é o contato com animais selvagens, maior é a probabilidade de que haja um evento desse tipo. Essas transições entre hospedeiros não são comuns, mas se o contato é frequente a chance aumenta. Assim, um ambiente que concentra muitos animais selvagens diferentes e muitas pessoas aglomeradas é o cenário ideal para o surgimento de novas doenças”, afirma Mathias Pires, doutor em Biologia Animal do Instituto de Biologia (IB) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e revisor das principais revistas científicas nas áreas de ecologia e evolução como Science, PNAS, Ecology Letters e Ecology. É nesse ponto que entramos.

Biodiversidade e posição estratégica

A população do Amazonas, segundo o IBGE, é de quatro milhões de habitantes. Não há comparação entre ela e a região de Wuhan, por exemplo, que possui 11 milhões de pessoas. A diferença é que nós estamos cercados por 60 mil espécies de plantas, mamíferos, répteis, invertebrados, anfíbios, peixes e pássaros, que representam 15%, da biodiversidade do planeta.

Segundo matéria publicada na Revista Science, cerca de 12% das 1.400 espécies de morcegos do planeta voam pela floresta amazônica. O morcego, como já foi dito, é uma das espécies que mais abriga vírus em seu corpo. E estão em contato direto em nossa floresta com macacos e roedores, que também carregam muitas ameaças potenciais. Atualmente, a Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e a Fiocruz da Amazônia trabalham para monitorar e catalogar o maior número de espécies possíveis.

Outro fator a ser considerado é a capital Manaus. Um dos principais centros turísticos da Região Norte e abrigando um dos maiores polos industriais do país, a cidade é porta de entrada e saída para diversos países. Vale lembrar, por exemplo, que uma das variantes de maior preocupação do novo coronavírus, a P.1, surgiu (ao que tudo indica) em Manaus, mas quando foi documentada pela primeira vez, já estava do outro lado do mundo, no Japão, em janeiro.

Se essa convivência entre homem e natureza fosse equilibrada, haveria poucos motivos para se preocupar. “No seu ambiente natural, é muito improvável que essa transição ocorra. Mesmo quando fazemos um trilha por exemplo, ou visitamos um rio, uma cachoeira, não ficamos em um ambiente fechado com centenas de outros animais. Mesmo havendo animais selvagens ao redor das fazendas ou vilarejos mais afastados a densidade de animais de uma mesma espécie não é grande o suficiente para haver risco desses eventos”, analisa Mathias Pires.

No entanto, essa interação está longe de ser equilibrada. A população do Estado está entrando em contato com essa diversidade organismos desconhecidos de maneira descontrolada. E pior: sem qualquer vigilância.

Caça e tráfico

Em tese, a caça não deveria ser um problema no Brasil. Afinal, a Lei Federal 5.197/1967 proíbe a caça dos animais de quaisquer espécies no país, em qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro. Apenas diante de condições especiais e peculiaridades regionais, o Poder Público pode permitir a sua realização, como o controle de espécies invasoras. Na prática, porém, a realidade não é bem assim.

O consumo de carne de caça no Amazonas é muito maior do que se imagina. Um estudo publicado em março de 2020 feito por uma parceria entre pesquisadores de diversas instituições como as Universidades de Oxford, Barcelona e o Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, de Tefé, no interior do Estado, fez uma descoberta surpreendente. O consumo de carne de caça na região equivale, em quantidade e lucratividade, ao da extração madeireira.

Os pesquisadores entrevistaram moradores dos 62 municípios do Amazonas e, em média, nada menos que 80% relataram comprar carne selvagem e 15% dos consumidores afirmaram praticar caça de animais selvagens ao longo do ano. Em cidades como Maraã, Fonte Boa, Alvarães e Coari, a média chegou a 90% dos entrevistados. O estudo aponta que o consumo de carne selvagem nesses locais são um grande setor informal, com lucro igual à produção de peixes e extração de madeira. Mas, justamente por ser ilegal, os valores oficiais do comércio de carne silvestre no Brasil não aparecem nas estatísticas oficiais.

No entanto, esse mercado não está relacionado à necessidade alimentar ou pobreza. Um outro estudo, desenvolvido por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e do Utah (EUA), mostram que a prática é cultural, passada entre gerações que acreditam que é preciso diversificar a alimentação com animais da fauna local. O grande problema é que essa prática favorece justamente o surgimento de novos vírus, a exemplo dos mercados de animais vivos que a OMS pede para que sejam fechados.

“A relação entre o tráfico de animais silvestres e o desmatamento, e a emergência de novas doenças virais emergentes é muito bem estabelecida. Há diversos casos bem documentados na Ásia e na África. Como a população humana, o tráfico de animais silvestres e o desmatamento vêm crescendo de forma acelerada, temos visto um aumento espantoso na emergência de doenças virais zoonóticas desde a década de 60”, alerta Mariana Vale, professora do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutora em Ecologia pela Duke University (EUA).

A invasão da fauna não é motivada apenas pela caça para o consumo. De acordo com relatório de agosto de 2020 da Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas), todo ano são traficados cerca de 38 milhões de espécies do país todos os anos. A Amazônia é o epicentro dessa prática.

“O contato com animais selvagens, seja como animais de companhia (pets), seja através do consumo de carne de caça, aumenta muito a chance de um vírus que circulava exclusivamente entre animais selvagens passar para o homem, tal qual aconteceu com o SARS-COV2. A comercialização aumenta muito a chance dessa passagem viral entre animais e o homem, pois existe toda uma cadeia comercial onde várias pessoas são expostas, incluindo o caçador, o transportador, o comerciante e o consumidor”, explica a pesquisadora.

Desmatamento

Não bastasse o contato direto com outras espécies para a caça e o tráfico, estamos atacando diretamente a estrutura do local que habitam as espécies. O desmatamento na Amazônia chegou a 196 km² em janeiro de 2021, segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), a partir de dados do Sistema de Alerta do Desmatamento (SAD) – que monitora via satélite as áreas desmatadas na região. É o maior valor da série histórica nos últimos 10 anos.

Aliás, todos os números relacionados ao meio ambiente no Brasil são os piores possíveis nos últimos anos. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) apontam que os primeiros sete meses de 2020 foram os que registraram mais queimadas em comparativo ao mesmo período de anos anteriores. Imagens do Planet Labs, empresa americana que mantém mais de cem satélites em órbita e fazem fotografias diárias de todo o globo mostraram o avanço do garimpo em terras indígenas ano passado.

Quando a ação do homem modifica um ecossistema dessa proporção, favorece o deslocamento e o contato entre espécies que pode representar a chance para um spillover. “Geralmente a emergência de zoonoses está associada a ambientes deteriorados onde as populações de animais não são mais reguladas por processos naturais como a disponibilidade de alimento ou seus predadores naturais. Quando uma população de uma espécie selvagem cresce de forma desregulada, pois não tem mais predadores ou por que se beneficia do ambiente criado pelo ser humano (plantações, cidades), seus parasitas também aumentam. Com isso aumenta também a chance de mutações e a probabilidade de surgimento de uma variante capaz de infectar o ser humano”, explica Mathias Pires.

O que fazer?

Estamos vendo o que um vírus pode fazer com a humanidade e sabemos de onde podem surgir as próximas ameaças. Então, o que fazer para evitá-las? A primeira coisa a aprender é: não há soluções mágicas e todas dependem de esforço do estado. A partir disso, o ideal é preservar as florestas, impedir ao máximo o contato de pessoas com animais silvestres e vigiar novos patógenos que apareçam.

“O investimento em ciência é mais que necessário para seguirmos monitorando e ampliando nossos conhecimentos acerca da dinâmica e presença de agentes infecciosos. A fiscalização de comércios ilegais de animais silvestres, bem como da ampliação de medidas de vigilância sanitária nos centros urbanos é de suma relevância”, orienta Mellanie Fontes-Dutra, biomédica, pesquisadora e coordenadora da Rede Análise Covid.

No caso da caça por populações do interior do Amazonas, o papel do poder público é fundamental. “Não há como tornar o comércio de animais capturados na natureza seguro do ponto de vista da saúde humana, pois não há nenhum controle dos patógenos que carregam. A solução seria a comercialização de carne de caça ou pets criados em cativeiro, seguindo as normas de biossegurança que temos para qualquer criação animal”, sugere Mariana Vale.

Jogando no time adversário

Sabemos qual a ameaça, onde ela tem maior probabilidade de surgir e o que deve ser feito. No entanto, quem deveria fazer esse trabalho, no caso o poder público, joga neste momento pelo adversário. No caso, pelos vírus que podem vir a nos causar problemas. Não faltam maus exemplos da classe política, em diversas esferas da União.

Pra começar, ao invés de investir no combate à caça de animais silvestres, há quem defenda que ela simplesmente seja legalizada. O Projeto de Lei 5544/20, do deputado federal Nilson Stainsack (PP-SC), regulamenta a prática da caça esportiva de animais no Brasil, envolvendo atos de perseguição, captura e abate. Segundo o autor, “a proibição da caça no Brasil não parece oferecer ganhos práticos em relação à conservação das espécies e manutenção de habitats”.

Na mesma Câmara dos Deputados, quem preside a Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados (CMADS) é ninguém menos que a deputada e extremista de direita Carla Zambelli (PSL/SP). A Organização Não Governamental (ONG) Greenpeace alertou para o perigo que ela representa uma ameaça direta ao meio ambiente.

No que diz respeito ao tráfico e desmatamento, o responsável pela fiscalização e multas a infratores deveria ser o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, mais conhecido pelo acrônimo Ibama. E quando digo “deveria ser”, é porque o órgão está deliberadamente deixando de fazer seu trabalho.

Em carta divulgada no último dia 20, mais de 600 servidores do Instituto afirmaram que “todo o processo de fiscalização e apuração de infrações ambientais encontra-se comprometido e paralisado”. O comunicado é uma reação à Instrução Normativa Conjunta (INC) 01, publicada no dia 14/04 pelo ministro Ricardo Salles e pelos presidentes do Ibama, Eduardo Bim, e do ICMBio, Fernando César Lorencini. A nova norma resultará em “prejuízos sem precedentes à proteçãoambiental”, denunciam os servidores.

Segundo a Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente, o governo Bolsonaro facilitou a exportação de madeira extraída ilegalmente. Vale sempre lembrar que Salles foi o ministro foi o mesmo que, em abril de 2020, sugeriu que o governo federal usasse a pandemia para “passar a boiada” na questão ambiental.

“Infelizmente, a pandemia de Covid-19 não foi uma surpresa para a comunidade científica, que vinha alertando há décadas sobre o risco cada vez maior de pandemias associadas ao tráfico de animais silvestres e desmatamento descontrolados em escala global. Se essas duas importantes fontes de emergência de doenças não forem controladas imediatamente, a tendência é, sem dúvida, pandemias como a Covid-19 cada vez mais frequentes”, alerta Mariana Vale.

Fotos:

Altemar Alcantara/Semcom

Felipe Werneck/Ibama

José Cruz/Agência Brasil

Divulgação / SSP-AM


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