Contexto

A crise no Afeganistão e como ela muda a geopolítica internacional

Surgido após uma ação para resgatar 3 garotas vítimas de sequestro e violência sexual, o Taliban retomou o poder no Afeganistão. Embora pareça algo distante da nossa realidade, essa mudança afeta drasticamente os rumos da geopolítica mundial

Combatentes talibans chegaram no último domingo (15/08/21) à capital do Afeganistão – Cabul, a última grande cidade que ainda estava sob controle do governo do presidente Ashraf Ghani, que abandonou o país, temendo represálias. Em uma ação surpreendene, o movimento extremista voltou  ao poder depois de duas décadas. 

Todas as grandes cidades caíram nas mãos dos radicais islâmicos. Em muitas delas não houve sequer resistência. Guarde essa informação. Embora pareça um assunto distante da sua realidade, os desdobramentos dessa crise vão influenciar toda a geopolítica do planeta, com consequências para todos.

Histórico

O Taliban é um grupo fundamentalista religioso surgido em 1994, na esteira dos eventos da guerra civil que atingiu o país entre 1992 e 1996, após a saída da então União Soviética do país. Com a retirada das tropas, foi deixado um governo frágil que tinha a difícil tarefa de enfrentar diversas milícias armadas na região.

Em julho de 1994, um grupo guerrilheiro sequestrou e estuprou 3 garotas. Um homem chamado Mohammed Omar recrutou 30 jovens e com 16 rifles atacou a base desse grupo guerrilheiro, resgatou as jovens e enforcou os raptores. Nascia ali o Taliban. O grupo começou composto em boa parte estudantes oriundos de campos de refugiados na fronteira com o Paquistão. Indignados com a situação do país, o grupo almejava reconstruir a sociedade do país com base em preceitos muçulmanos.

Em 1996, com apoio político do Paquistão, o grupo toma a capital Cabul e assume o controle do país. “O período do Talibã foi terrível. Violação de direitos humanos, intolerância religiosa e perseguição étnica eram coisas do cotidiano. Em 1997 o Taliban estreita laços com a Al Qaeda, criando as condições para atos terroristas, entre eles os de 11 de setembro de 2001”, explica o Áureo Toledo, doutor em ciência política pela Universidade de São Paulo (USP) e professor do Instituto de Economia e Relações Internacionais Universidade Federal de Uberlândia. Toledo é autor de uma dissertação de mestrado sobre o Afeganistão.

Depois do atentado, as tropas dos EUA tomaram Cabul, em retaliação ao apoio do país à Al Qaeda. O Talibã caiu em 13 de novembro de 2001. A partir daí, as lideranças do Talibã passaram a se refugiar no país, muitas próximas à fronteira com o Paquistão, mas não estava morto. Muito longe disso.

Visão controversa

Ao contrário do que se imaginava, o Taliban não havia desistido de retomar o poder. Há alguns anos, o grupo já dava sinais de reorganização, na esteira do anúncio da saída dos EUA, inclusive conquistando partes do país, a maioria delas, como foi dito, sem a menor resistência.

Isso porque a visão do povo afegão sobre o Taliban é complexa. Apesar das cenas tristes de muitos afegãos tentando escapar pelo aeroporto de Cabul, essa visão não é compartilhada por todos. Os moradores das áreas rurais são indiferentes ou apoiam o Talibã, e a elite urbana não é tão numerosa.

“É preciso lembrar que o Afeganistão é um país majoritariamente rural. E nas áreas rurais a população olhava para o governo central de forma muito desconfiada. Muitos consideravam um governo corrupto que não atendia aos seus interesses. Uma das explicações para o avanço tão rápido do Talibã seria, em parte, esse apoio da população local. Não houve grandes resistências nas partes periféricas. E quando chegou em Cabul, onde se esperava uma resistência um pouco maior, o próprio Exército parecia que já tinha desistido de lutar e não tinha interesse no conflito”, explica Fernando Luz Brancoli, pesquisador e professor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

“A população mais pobre e carente do Afeganistão tem um sentimento positivo sobre o Talibã, apesar das atrocidades e violações de direitos humanos”, explica Igor Macedo de Lucena, doutorando em Relações Internacionais na Universidade de Lisboa e membro da Chatham House – The Royal Institute of International Affairs e da Associação Portuguesa de Ciência Política.

EUA

Se por um lado o Taliban é aceito por parte da população, por outro, os Estados Unidos não goza do mesmo prestígio. O presidente Joe Biden, defendeu a decisão de retirar as tropas norte-americanas do Afeganistão e rejeitou as amplas críticas à decisão, que gerou uma enorme crise para seu governo depois que o Taliban retomou o poder.

Biden disse que a missão dos Estados Unidos no Afeganistão nunca deveria ser de construção de uma nação, e culpou a relutância do Exército afegão em lutar contra o grupo militante pela volta do Taliban ao poder. Durante os 20 anos de ocupação, ocorreu uma ampliação das liberdades civis e desenvolvimento econômico em alguns setores, mas também diversas denúncias de corrupção.

Vale lembrar, no entanto, que a responsabilidade da saída das tropas não foi de Biden. A retirada foi pactuada no ano passado em um acordo bilateral firmado entre o então presidente Donald Trump e o Taliban. O processo deveria ser concluído até maio deste ano. O grupo afegão se comprometeu a não dar abrigo a terroristas da Al Qaeda e do Estado Islâmico.

Fronteiras

Dois fatores oriundos da crise no Afeganistão vão influenciar a questão política internacional: a estabilidade (ou instabilidade) das suas fronteiras com o Turcomenistão, Usbequistão e o Paquistão e principalmente com regiões como o Tibet e da Índia e a questão migratória.

O primeiro levou o governo chinês a sinalizar apoio ao regime Taliban. Isso porque o Afeganistão faz fronteira com a região autônoma de Xinjiang, no noroeste da China, onde habitam os uigures, uma minoria étnica muçulmana que possui relação tensa com Pequim.

Os chineses acusam militantes uigures promovem campanha pela independência da região de maneira violenta, inclusive mantendo ligações com a Al-Qaeda. Os mesmos chineses, por sua vez, são acusados de repressão violenta contra os uigures, com relatos de campos de concentração contra os uigures. A última coisa que Pequim parece interessada é na influência do Taliban sobre os uigures, daí a oferta de paz. Além do interesse em recursos naturais dos afegãos, como a extração de cobre.

“Como a Rússia e a China não são grandes defensores de direitos humanos de minorias, não vai haver muita intromissão em atrocidades que o Taliban possa vir a cometer. Aliás, já há alguma especulação sobre o armamento que o regime usou para a tomada dessas regiões ter vindo de origem chinesa ou russa. Por outro lado, também há interesse em que a região não se torne novamente um celeiro para terrorismo”, explica Igor Macedo de Lucena.

Outro país que vai influenciar bastante nesse tabuleiro é o Paquistão. “O discurso do Paquistão é bastante ambíguo sobre o Taliban, porque se por um lado ele teme que o fluxo de refugiados possa causar conflitos no país, por outro ele foi o primeiro país a reconhecer a chegada do regime ao poder em 1996”, explica Mayra Cardozo, advogada especialista em Direitos Humanos pela Universidade Pablo de Olavide (UPO), em Sevilha-ESP.

A Rússia também já está sendo um personagem importante nesse jogo. Há relatos que foi o governo de Vladimir Putin quem deu apoio logístico de inteligência para a retomada de poder do Taliban. Isso porque ambos tem um inimigo em comum: o Estado Islâmico. “A Rússia tem o intuito de enfraquecer o Estado Islâmico na região”, explica a advogada.

Migração

Como disse Mayra, outra consequência da crise afegã para o mundo é o fluxo migratório. Em 2015, por exemplo, a onda de refugiados da Guerra da Síria, por exemplo, foi fundamental para o avanço do discurso da extrema-direita na Europa, principalmente na Alemanha e na Itália, se espalhando mais tarde em outras partes do mundo.

O partido de extrema-direita AFD, “Alternativa para a Alemanha”, surgiu em 2013, mas exatamente em 2015 ganhou espaço entre aqueles que veem o fluxo de migrantes e refugiados como uma ameaça ao país. A sigla defende o forte controle das fronteiras e usa um discurso bastante nacionalista. Com uma nova crise no Oriente Médio, o temor é que algo semelhante aconteça agora.

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