O conceito de “desertos de notícias” tornou-se recorrente nos estudos de jornalismo desde as pesquisas de Penelope Abernathy, nos Estados Unidos, e ganhou força no Brasil por meio do Atlas da Notícia. Define-se como deserto o município sem veículos jornalísticos em funcionamento, e como quase deserto aquele com número reduzido de meios. Embora tenha mérito ao chamar atenção para a desigualdade no acesso à informação, o conceito apresenta limitações epistemológicas e políticas que precisam ser criticamente discutidas.
Um primeiro limite é a sua origem norte-americana, fortemente vinculada à crise do jornalismo impresso e ao modelo empresarial urbano. Quando importado para o Brasil e para a América Latina, esse enquadramento tende a desconsiderar a diversidade comunicacional de nossos territórios, onde rádios comunitárias, jornais de bairro, coletivos digitais, mídias indígenas e ribeirinhas cumprem papel central na circulação de informações. Rotular tais localidades como “desertos” equivale a invisibilizar essas práticas, reproduzindo a lógica da colonialidade do saber (Quijano, 2000; Mignolo, 2010), na qual apenas formas eurocêntricas de jornalismo são reconhecidas como legítimas.
A metáfora de “deserto” reforça esse apagamento ao sugerir ausência absoluta de vida informacional. Na prática, mesmo em áreas sem jornalismo empresarial, existem intensos fluxos de comunicação. O problema não é a inexistência de informação, mas o não reconhecimento de formatos que escapam ao padrão dominante. Assim, o conceito opera como um mecanismo de epistemicídio comunicacional, ao negar legitimidade a formas locais de produção e compartilhamento de notícias.
Mas há ainda uma contradição mais profunda, que torna o conceito falacioso em certos contextos. Um município com um jornal ou rádio que apenas reproduz releases de prefeituras, ou que atua como “chapa-branca”, deixa de ser classificado como deserto. No entanto, isso não garante à população acesso à informação crítica ou plural. Mais provocativo ainda: em regiões onde veículos sobrevivem quase exclusivamente de verbas públicas, condicionadas a interesses de determinados grupos políticos, podemos realmente falar em “não-desertos”? Ou estamos diante de uma simulação de jornalismo, gerada pela precariedade da profissão, que obriga veículos e profissionais a se render ao clientelismo e dependência, ao invés de ampliar cidadania informativa?
Essa provocação evidencia que a métrica do Atlas e de outros estudos equivale a contar cascas vazias: reconhece a presença institucional de veículos sem avaliar a qualidade, independência ou diversidade da cobertura. Assim, há localidades que figuram como “não-desertos”, quando na prática vivem sob monoculturas informativas ou mesmo em zonas de silêncio induzido, onde a única voz presente é a do poder local.
O conceito de desertos de notícias, além de carregar uma dimensão colonial ao impor parâmetros do Norte Global ao Sul, pode também legitimar falsos não-desertos, onde a informação é capturada por interesses políticos e econômicos. É necessário, portanto, descolonizar e complexificar essa categoria, incorporando indicadores de independência editorial, diversidade de vozes e qualidade informativa. Em vez de desertos e não-desertos, talvez devêssemos falar em ecossistemas comunicacionais plurais ou capturados, reconhecendo que o verdadeiro problema não é apenas a ausência de veículos, mas a fragilidade democrática do jornalismo que sobrevive.
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