Opinião

Alexandre de Moraes, a imprensa lavajatista e a teoria do enquadramento

A cobertura sobre Alexandre de Moraes mostra que a mídia hegemônica ainda opera no modo Lava Jato. Quando o jornalismo decide enfatizar suspeitas antes de provas, versões antes de documentos, ele não informa — ele direciona o julgamento público

Manaus, 26 de dezembro de 2025 – Ao publicar reportagens baseadas em múltiplas fontes anônimas para sugerir condutas impróprias do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), a mídia hegemônica brasileira repete um erro que o jornalismo brasileiro já conhece — e cujo preço foi alto. Trata-se do mesmíssimo enquadramento acrítico que marcou a cobertura da Operação Lava Jato e corroeu princípios básicos do Estado Democrático de Direito no Brasil.

Ao ignorar fundamentos do jornalismo, esse “padrão de cobertura” alimentou a antipolítica e ajudou a criar um movimento autoritário que elegeu um governo de extrema direita em 2018. Esse mesmo grupo foi responsável direto pelas mortes de 700 mil pessoas na pandemia da Covid-19 e quase destruiu a democracia no dia 8 de janeiro de 2023. E que ainda está a espreita, esperando apenas o momento certo para atacar novamente.

A teoria do enquadramento

A cobertura da Operação Lava Jato, celebrada por anos como símbolo de virtude moral e combate implacável à corrupção, deixou marcas profundas na política, nas instituições e na sociedade. Parte dessas marcas reaparece agora, quando reportagens recentes voltam a operar no limite entre o fato comprovado e a sugestão insinuada.

O problema não está em investigar o poder. Está em como se investiga e como se narra. Durante a Lava Jato, uma parcela relevante da imprensa optou por uma linha editorial que privilegiava versões oficiais, vazamentos seletivos e personagens transformados em heróis públicos. O resultado foi um jornalismo que, muitas vezes, antecipou conclusões, relativizou garantias e abriu mão do ceticismo que deveria ser sua marca registrada.

Esse tipo de abordagem tem nome. É o que o pesquisador Robert Entman chamou de “teoria do enquadramento” (framing theory). Nela,a escolha de certos elementos da realidade para orientar o sentido da narrativa. Não é uma escolha neutra. Quando o jornalismo decide enfatizar suspeitas antes de provas, versões antes de documentos, ele não informa — ele direciona o julgamento público.

Para Entman, enquadrar é selecionar alguns aspectos da realidade percebida e torná-los mais salientes no texto, de modo a definir um problema, atribuir responsabilidades, sugerir interpretações e induzir julgamentos morais, muitas vezes sem que isso seja explicitado. Em termos jornalísticos, isso significa que duas reportagens podem relatar os mesmos fatos e ainda assim produzir efeitos completamente distintos na opinião pública.

Pierre Bourdieu já alertava que o jornalismo, pressionado por prestígio, acesso e competição, tende a reproduzir discursos do poder que investiga. Eugênio Bucci, por sua vez, foi ainda mais direto ao lembrar que indignação não pode ser método. Quando o jornalismo troca critérios claros e apuração rigorosa por moralização, ele deixa de iluminar a realidade e passa a distorcê-la.

A Lava Jato, seus “heróis” e suas vítimas

A Lava Jato não foi apenas uma operação judicial. Foi um fenômeno midiático. Procuradores e juízes passaram a ser tratados como protagonistas de uma cruzada moral. Deltan Dallagnol e Sergio Moro foram alçados ao status de símbolos nacionais do combate à corrupção. Entrevistas exclusivas, capas com semiótica elogiosa e narrativas épicas ajudaram a consolidar a ideia de que ali estava uma força acima de qualquer suspeita.

O tempo mostrou que não era bem assim. As revelações da série de reportagens da Vaza Jato, em 2019, expuseram diálogos que colocaram em xeque a imparcialidade do processo, revelando proximidade indevida entre promotoria e magistratura. Mesmo assim, ambos capitalizaram politicamente o prestígio construído com ajuda decisiva da cobertura jornalística.

Moro aceitou o convite para ser ministro da Justiça de Jair Bolsonaro, adversário de Luís Inácio Lula da Silva em 2018, impedido de disputar a eleição pelo próprio Moro. Sob olhares passivos da imprensa lavajatista, ambos formaram um governo de extrema direita que passou a atacar instituições democráticas.

Dallagnol, por sua vez, elegeu-se deputado federal e manteve o discurso igualmente alhinhado ao bolsonarismo, sob o mesmíssimo silêncio da mídia hegemônica. Aqui ao menos agiu a implacável justiça poética: Dallagnol teve o mandato cassado pela Justiça Eleitoral por entender que ele deixou o Ministério Público para driblar a Lei da Ficha Limpa.

Se a retórica moralizante da Lava Jato ajudou a sustentar esse projeto de poder, no plano humano, porém, o custo foi ainda mais cruel. Em 2017, o então reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier, foi preso em uma operação policial sob a acusação de tentar obstruir investigações sobre desvios na universidade.

Não havendo provas diretas contra ele, foi solto no dia seguinte. Meses depois, investigações apontaram que não existiam elementos que sustentassem a acusação que o expôs publicamente. Era tarde. Não suportando a humilhação, Cancellier morreu naquele mesmo ano, ao tirar a própria vida. O episódio tornou-se símbolo do que acontece quando o jornalismo ecoa versões oficiais sem o devido distanciamento crítico.

STF e seus conflitos reais

Se é fato houve abusos na Lava Jato fato, também é fato que há problemas gravíssimos e recorrentes de conflitos de interesse envolvendo ministros do Supremo Tribunal Federal. Ignorá-los seria tão irresponsável quanto os métodos de cobertura citados aqui. O chamado “Gilmarpalooza”, fórum jurídico idealizado por Gilmar Mendes em Lisboa, reúne ministros, políticos, advogados e empresários em um ambiente de convivência que desafia a ideia de distanciamento institucional. O jantar de Luís Roberto Barroso com o CEO do iFood reacendeu debates sobre limites éticos entre magistratura e agentes econômicos interessados em decisões do Judiciário.

Kássio Nunes Marques passou a ser alvo de questionamentos públicos desde 2021, quando reportagens revelaram que o ministro teria participado de uma viagem internacional de alto custo à Europa — incluindo Paris e Mônaco, em período de eventos esportivos como a final da Champions League — em aeronave privada associada a um advogado com processos em tramitação no STF. Marques acumulou ainda críticas por decisões monocráticas controversas, como a que beneficiou o bicheiro Rogério Andrade ao retirar o uso de tornozeleira eletrônica.

No caso de Dias Toffoli, os fatos são conhecidos: o ministro viajou em jatinho particular para assistir à final da Libertadores em novembro passado no mesmo voo em que estava um advogado ligado a um investigado no caso Banco Master, pouco depois de ter sido sorteado relator do processo no STF. Isso para ficarmos nos exemplos mais recentes dos atuais integrantes da Corte.

Alexandre de Moraes e o enquadramento

O episódio envolvendo Alexandre de Moraes exige ainda mais cuidado justamente por reunir instituições sensíveis, personagens centrais da República e um ambiente político altamente inflamável. Resumindo: reportagens apontaram que o ministro do STF teria se reunido em mais de uma ocasião com o presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, em meio ao processo de liquidação do Banco Master e à negociação de venda da instituição ao Banco de Brasília (BRB). O ponto central da controvérsia foi o fato de o escritório de advocacia da esposa de Moraes prestar serviços ao Banco Master, o que levantou questionamentos sobre eventual conflito de interesses.

As reportagens afirmaram que seis pessoas ouvidas sob condição de anonimato teriam confirmado que o Banco Master foi tratado nesses encontros. Moraes reagiu publicamente, negando qualquer interferência ou discussão sobre o banco e afirmando que as reuniões tiveram como pauta os efeitos práticos da aplicação da Lei Magnitsky, sanção internacional que atingiu sua família e impactou relações bancárias. O próprio Banco Central confirmou a realização dos encontros, mas declarou que o tema Banco Master não foi tratado.

Esse é exatamente o tipo de situação em que o jornalismo precisa operar com rigor máximo, porque o problema não está apenas no fato em si, mas no modo como ele é apresentado ao público. O uso de fontes anônimas é legítimo e necessário em democracias — especialmente quando há risco de retaliação. O problema surge quando o anonimato deixa de ser exceção e passa a sustentar o núcleo da narrativa, sem que o leitor tenha acesso proporcional a documentos, registros formais ou versões plenamente confrontadas.

Robert Entman explica que o enquadramento não depende apenas do que é dito, mas do peso dado a cada elemento da notícia. Quando a informação central repousa em fontes não identificadas, o framing desloca a atenção do leitor: a suspeita ganha mais relevo do que a verificação.

Pierre Bourdieu já alertava que, nessas situações, o jornalismo corre o risco de funcionar como caixa de ressonância de disputas internas do poder, reproduzindo versões interessadas sob a aparência de denúncia. Eugênio Bucci reforça que o anonimato, quando não vem acompanhado de transparência metodológica, fragiliza a confiança pública e transforma o jornalismo em um exercício de sugestão — não de apuração.

Nada disso significa blindar ministros do Supremo. Pelo contrário. Os conflitos de interesse são reais, recorrentes e precisam ser expostos. Mas exatamente por isso, o método importa tanto quanto o tema. Em um país que já viu suspeitas serem tratadas como sentenças, versões como verdades e personagens como heróis — até que o estrago estivesse feito —, o jornalismo não pode se dar ao luxo de repetir o erro. Aqui, mais do que nunca, forma é conteúdo.

Não falhar de novo

E é aqui que o jornalismo não pode falhar de novo. Quanto mais sensível o tema, maior precisa ser o rigor. Reportagens baseadas majoritariamente em fontes anônimas, sem documentação proporcional à gravidade das insinuações, correm o risco de repetir o mesmo erro da Lava Jato: criar narrativas que antecedem os fatos e amplificam tensões em um ambiente democrático já fragilizado e altamente inflamável.

O Brasil vive um momento de instabilidade política, com grupos que ainda defendem a anistia de golpistas e flertam abertamente com soluções autoritárias. Nesse cenário, o jornalismo não pode ser combustível. Precisa ser freio, método e responsabilidade.


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