Engrenagens

Do RP9 ao Orçamento de 2026: a escalada das emendas parlamentares

A aprovação do Orçamento de 2026, com R$ 61 bilhões em emendas e cortes sociais, evidencia a evolução do modelo orçamentário no Brasil. Estudos do Ipea, INESC, IEPS e Transparência Brasil mostram como o Congresso ampliou seu controle sobre os gastos públicos

Manaus, 20 de dezembro de 2025 – A aprovação do Orçamento da União para 2026, nesta sexta-feira, 19 de dezembro de 2025, consolidou mais um capítulo da transformação silenciosa — e contínua — do modelo de gestão do dinheiro público no Brasil.

O texto aprovado pelo Congresso Nacional elevou para cerca de R$ 61 bilhões o volume destinado a emendas parlamentares, ao mesmo tempo em que promoveu cortes em programas sociais e benefícios trabalhistas para acomodar a ampliação do espaço orçamentário controlado pelo Legislativo. O movimento ocorre após anos de expansão desse mecanismo, iniciado ainda no fim da década passada e aprofundado durante o período do chamado orçamento secreto, reconfigurando o equilíbrio de forças entre Executivo e Congresso.

Para viabilizar o aumento das emendas, parlamentares ajustaram despesas originalmente previstas pelo governo federal. O programa Pé-de-Meia sofreu redução aproximada de R$ 436 milhões. O Auxílio Gás teve corte estimado em R$ 300 milhões. O Seguro-Desemprego perdeu cerca de R$ 391 milhões, enquanto o Abono Salarial foi reduzido em aproximadamente R$ 207 milhões, conforme os valores consolidados no texto aprovado. A votação ocorreu em meio a um cenário de crescente protagonismo do Legislativo na definição de prioridades orçamentárias e de questionamentos recorrentes sobre transparência, rastreabilidade e critérios de distribuição dos recursos públicos.

Do orçamento secreto à reconfiguração atual

A ampliação das emendas parlamentares não surgiu de forma abrupta em 2025. Estudos do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (IBRE/FGV) mostram que o volume de emendas no orçamento federal saltou de R$ 6,14 bilhões em 2014 para cerca de R$ 44,67 bilhões em 2024, indicando um crescimento expressivo da participação do Congresso nas despesas discricionárias do Executivo, conforme a análise Aumento das emendas sinaliza necessidade de nova governança orçamentária (2024).

Esse processo ganhou contornos mais definidos a partir de 2019, com a criação e expansão das emendas de relator, classificadas como RP9, que passaram a concentrar bilhões de reais sem a identificação clara dos parlamentares responsáveis pelas indicações. O modelo ficou conhecido como orçamento secreto, sendo posteriormente declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Ainda assim, relatórios posteriores indicam que a lógica de funcionamento foi parcialmente mantida por meio de novos arranjos institucionais.

O boletim Orçamento Secreto da Saúde cresceu 162% entre 2020 e 2022 (IEPS/Umane, 2023, atualizado em 2024) demonstrou que apenas no Ministério da Saúde os valores executados via emendas associadas ao modelo cresceram de forma acelerada, totalizando R$ 14,7 bilhões no período analisado. O estudo aponta dificuldades persistentes de rastreamento e fiscalização, mesmo após mudanças formais nas regras de execução.

Na mesma linha, pesquisas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostram como as emendas passaram a ocupar um espaço estrutural no orçamento federal. O estudo Financiamento das Ações e Serviços Públicos de Saúde: evolução e participação das emendas parlamentares (2024) identificou que, entre 2010 e 2022, as emendas deixaram de ser um instrumento complementar e passaram a desempenhar papel central no financiamento de políticas públicas, com distribuição desigual entre regiões e entes federativos. Já o Texto para Discussão Evolução da Participação das Emendas Parlamentares no Orçamento Federal da Assistência Social (2025) apontou tendência semelhante no campo da assistência, com aumento contínuo da dependência de recursos indicados pelo Legislativo.

Transparência, impacto social e disputas

O avanço das emendas também alterou o desenho das despesas discricionárias, como destacado no relatório Orçamento e Direitos: balanço da execução de políticas públicas (INESC, 2025). O documento mostrou que, em 2024, as emendas parlamentares representaram cerca de 27% das despesas discricionárias, somando R$ 40,89 bilhões, o que o instituto classificou como a consolidação de um modelo de parlamentarismo orçamentário. Segundo o relatório, esse rearranjo reduziu a margem de manobra do Executivo para planejar e executar políticas públicas de forma integrada.

Mesmo após o fim formal do orçamento secreto, análises da Transparência Brasil indicam a permanência de problemas estruturais. O relatório Emendas de comissão paralelas repetem prática do orçamento secreto em 2025 apontou que novas modalidades de emendas continuaram a operar com baixo nível de publicidade sobre autoria, critérios de distribuição e beneficiários finais, reproduzindo limitações já identificadas nos anos anteriores.

É nesse contexto que se insere a aprovação do Orçamento de 2026. O aumento para R$ 61 bilhões em emendas parlamentares, acompanhado de cortes em políticas sociais e trabalhistas, reflete uma trajetória de mais de uma década de fortalecimento do Congresso na definição do gasto público. Os estudos recentes convergem ao indicar que, embora o modelo tenha sido formalmente reconfigurado após decisões judiciais, os desafios relacionados à transparência, ao equilíbrio institucional e aos impactos sobre políticas sociais permanecem no centro do debate orçamentário brasileiro.

Linha do tempo — a ascensão das emendas

2015–2018 | Emendas ainda como instrumento complementar Até meados da década de 2010, as emendas parlamentares individuais e de bancada tinham peso limitado no Orçamento da União. A condução das despesas discricionárias permanecia majoritariamente sob controle do Poder Executivo, que definia prioridades e cronogramas de execução.

2019 | Criação das emendas de relator (RP9) Com a tramitação do Orçamento de 2020, o Congresso cria a rubrica RP9 — emendas do relator-geral, sem critérios claros de distribuição nem identificação pública dos autores das indicações. Esse mecanismo inaugura uma mudança estrutural na relação entre Executivo e Legislativo.

2020 | Consolidação do chamado “orçamento secreto” As emendas RP9 passam a movimentar bilhões de reais. O modelo permite a distribuição de recursos a parlamentares aliados sem transparência sobre autoria, destino final e critérios técnicos, tornando-se central na governabilidade do governo federal.

2021 | Revelações públicas e questionamentos institucionais Reportagens jornalísticas e análises técnicas — como as publicadas pelo Vocativo em maio e novembro de 2021 — expõem o funcionamento do orçamento secreto. O tema passa a ser alvo de ações no Supremo Tribunal Federal (STF), no Tribunal de Contas da União (TCU) e de críticas de órgãos de controle e da sociedade civil.

2022 | STF declara o orçamento secreto inconstitucional O STF decide que as emendas de relator, da forma como operavam, violavam princípios constitucionais da publicidade, impessoalidade e moralidade administrativa. O Congresso é obrigado a reformular o modelo, extinguindo formalmente a RP9.

2023 | Reconfiguração das emendas após o fim formal da RP9 Apesar da extinção do orçamento secreto, o Congresso passa a redistribuir volumes semelhantes de recursos por meio de emendas individuais, de bancada e de comissão, mantendo elevada influência sobre o orçamento. Estudos do IEPS/Umane (2023/2024) mostram crescimento acelerado dessas emendas, especialmente na área da saúde.

2024 | Emendas tornam-se estruturais no orçamento federal Dados analisados pelo IBRE/FGV (2024) e pelo Ipea indicam que as emendas parlamentares deixam de ser um mecanismo acessório e passam a ocupar parcela relevante das despesas discricionárias, reduzindo a capacidade de planejamento do Executivo.

2025 | Persistência de problemas de transparência Relatórios da Transparência Brasil (2025) apontam que emendas de comissão “paralelas” continuam operando com lacunas de rastreabilidade, repetindo práticas associadas ao orçamento secreto, mesmo após decisões do STF.

19 de dezembro de 2025 | Aprovação do Orçamento da União para 2026 O Congresso aprova o Orçamento de 2026 com cerca de R$ 61 bilhões reservados para emendas parlamentares, o maior volume já registrado. Para acomodar esse crescimento, são promovidos cortes em programas como Pé-de-Meia, Auxílio Gás, Seguro-Desemprego e Abono Salarial, consolidando a transferência de poder orçamentário do Executivo para o Legislativo.

Estudos recentes do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) analisam a expansão das emendas parlamentares e seus efeitos sobre o Orçamento federal. As pesquisas apontam que, nos últimos anos, as emendas passaram a representar uma parcela crescente das despesas discricionárias, especialmente em áreas como saúde, educação e assistência social.

De acordo com os levantamentos do instituto, em alguns exercícios orçamentários as emendas chegaram a responder por mais de um quarto das despesas discricionárias executadas, ampliando a participação do Legislativo na definição do destino dos recursos públicos.

Os estudos também indicam que a pulverização dos recursos por meio de milhares de indicações parlamentares dificulta a coordenação do gasto público e impõe desafios ao planejamento de políticas de alcance nacional, mesmo após o fim do protagonismo formal das emendas de relator.


Descubra mais sobre Vocativo

Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.

Deixe uma resposta

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.