Opinião

Uso da expressão “no meio do mato” diz muito sobre a mídia hegemônica

Quando jornalistas dos maiores veículos do país tratam a Amazônia como “meio do mato”, revelam que a região nunca foi prioridade — apenas a oportunidade de uma performance. Fica a pergunta: e quando a COP30 acabar? A floresta não é banco de pautas, é parte vital do sistema que mantém o planeta vivo
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Na tarde deste sábado, 4 de outubro de 2025, um comentário nas redes sociais expôs mais uma vez o preconceito e a falta de preparo de parte da imprensa brasileira para lidar com a Amazônia. O jornalista André Shalders, do portal Metrópoles, publicou — e logo apagou — uma mensagem debochando da Zona Franca de Manaus, numa tentativa desajeitada de “análise econômica” que terminou como retrato fiel da arrogância e da ignorância que ainda predominam no debate público sobre a região. O mais triste, no entanto, é que essa expressão – “no meio do mato” – não é nova no nosso meio profissional.

O caso de Shalders está longe de ser isolado. Em 2024, William Waack protagonizou episódio semelhante, como já exposto por mim mesmo neste texto publicado na IJNet. E é bem comum no nosso meio, colegas do eixo sul-sudeste se referenciarem à região como se fosse um bloco territorial único, confundindo nomes de capitais, trocando manifestações culturais (achando que Boi Bumbá é no Maranhão ou Bumba Meu Boi é no Amazonas). Isso porque o problema não é apenas moral — é estrutural.

Jornalistas amazônidas estão cansados desse tipo de prática. Não bastasse a dificuldade de sobrevivência financeira em um mercado que concentra oportunidades e recursos no eixo Rio-São Paulo, ainda precisam enfrentar o desdém de colegas que insistem em tratar a Amazônia como um lugar exótico, distante e inferior. Quem nunca ouviu falar da expressão tenebrosa “Amazônia profunda”? O termo “no meio do mato” é, sim, xenofóbico e preconceituoso.

Além disso, a declaração apagada por Shalders é o tipo de comentário que parte de quem não entende (ou se recusa a entender) o que representa a Zona Franca de Manaus. Estudos publicados em periódicos como Estudos Econômicos (USP, 2021) e Revista de Economia Contemporânea (UFRJ, 2022) mostram que extinguir o modelo não reduziria automaticamente os preços dos produtos — apenas transferiria empregos e arrecadação para os grandes centros, acentuando desigualdades regionais.

A ZFM tampouco é uma “bondade” concedida ao Amazonas, mas um instrumento de desenvolvimento que ajuda a conter o desmatamento e a manter a floresta em pé. Pesquisas do Instituto Escolhas, da FGV e do IPEA demonstram que, sem o polo industrial, a pressão por devastação seria significativamente maior. A economia verde depende de incentivos inteligentes, e o modelo manauara é um deles — ainda que precise de ajustes e fiscalização rigorosa. Que fique uma coisa clara: o modelo está longe da perfeição, mas se vamos debatê-lo, façamos em um debate intelectualmente honesto.

A hipocrisia sobre subsídios se torna gritante quando lembramos que o mesmo Estado brasileiro despeja centenas de bilhões de reais em subsídios para o agronegócio, via Plano Safra. Um setor que destrói biomas, emite gases de efeito estufa e ainda bancou — literal e ideologicamente — os golpistas do 8 de janeiro. Ou seja, dinheiro público a serviço da devastação e do extremismo, enquanto o Norte é acusado de ser um “peso” para o país.

Mas talvez o mais constrangedor desse episódio tenha sido o silêncio cúmplice da categoria. A falta de reação de tantos colegas e veículos diante de uma ofensa pública à região mostra o quanto ainda estamos sozinhos. O Vocativo não ficará calado. Qualquer novo ataque dessa natureza será respondido com a mesma contundência: ignorância não é opinião, e preconceito não é argumento.

Quando figuras como Shalders e Waack – que deveriam ser referência no jornalismo – demonstram tamanho nível de ignorância e preconceito, fica evidente que a Amazônia nunca teve importância real dentro da imprensa brasileira — apenas um valor performático. Durante grandes eventos, como a COP30, o interesse se inflama em discursos, hashtags e reportagens, mas tudo indica que, quando as luzes se apagarem em Belém, o olhar voltará ao eixo tradicional, como se a floresta deixasse de existir. Justamente no momento em que tanto precisamos dela.

A crise climática é uma realidade implacável e a Amazônia, ao contrário do que dizem os desinformados, não é “meio do mato”: é o coração ecológico do planeta. Sem ela, não há sobrevivência possível — nem para o Brasil, nem para o resto do mundo.


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1 comentário

  1. Excelente artigo! Uma resposta à altura desses profissionais sem ética nem responsabilidade que empestam as redações. Em pleno século 21, temos que aturar essa visão retrógrada, equivocada e preconceituosa de uma turma que trata o norte como selvagem e inóspito, sem civilização. Parabéns!

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