Engrenagens

Indígena denuncia estupros sofridos durante nove meses em delegacia do Amazonas

Estupro, negligência do Estado e prisão ilegal: indígena da etnia kokama denuncia abusos em delegacia no Amazonas. A jovem permaneceu nove meses presa com homens e sofreu agressões sexuais. Relatos apontam estupros na presença do filho recém-nascido

Uma mulher indígena da etnia kokama denunciou ter sido vítima de sucessivos estupros durante os nove meses em que permaneceu presa na 53ª Delegacia de Polícia Civil de Santo Antônio do Içá, no interior do Amazonas. Os crimes teriam ocorrido entre novembro de 2022 e agosto de 2023, período em que ela esteve encarcerada de forma irregular, dividindo cela com homens e na presença do filho recém-nascido. A denúncia partiu de reportagem do jornalista Rubens Valente para o portal Sumaúma.

A vítima, identificada pelas iniciais L.S.F., relata ter sido violentada por pelo menos quatro policiais militares e um guarda municipal, sempre durante o turno da noite. Segundo o advogado Dacimar de Souza, que assumiu a defesa da mulher dois meses antes de sua transferência para Manaus, os abusos ocorreram inclusive durante o puerpério — apenas 20 dias após o parto. A criança permaneceu com a mãe na cela por ao menos dois meses, para ser amamentada.

“Ela não confiava em relatar os abusos sofridos nem aos advogados que a representavam antes, nem à psicóloga do Creas que a acompanhava”, afirmou o defensor. Foi apenas após sua remoção para a Cadeia Pública Feminina de Manaus, em 28 de agosto de 2023, que ela se sentiu segura para denunciar. O exame de corpo de delito, realizado no mesmo dia, confirmou a ocorrência de conjunção carnal com sinais de violência.

A jovem indígena cumpre pena de 16 anos e sete meses em regime fechado, por condenação no crime de homicídio qualificado ocorrido em 2018, em Manaus. Ela foi presa em 11 de novembro de 2022, ao comparecer à delegacia para denunciar violência doméstica. Na ocasião, foi surpreendida com um mandado de prisão em aberto, embora já tivesse autorização da Justiça, desde maio de 2020, para cumprir pena em regime domiciliar.

Sem estrutura no município para manter presas do sexo feminino, a mulher foi encarcerada em uma cela improvisada, no corredor da delegacia, ao lado de detentos homens considerados de “menor periculosidade”. As condições precárias foram registradas por advogados, um delegado e um magistrado, que chegaram a alertar a Justiça sobre a situação e recomendar a transferência urgente da detenta para Manaus. A Secretaria de Administração Penitenciária (Seap), porém, alegou dificuldades logísticas e financeiras.

Durante os abusos, segundo o relato da vítima, os agentes a forçavam a ingerir bebidas alcoólicas antes das agressões. A presença da criança na cela teria sido autorizada informalmente como solução para permitir a amamentação, já que a família da mulher não tinha condições de cuidar do bebê. O advogado afirma que desconhece se houve autorização judicial formal para essa decisão.

Em fevereiro de 2025, a defesa da vítima ajuizou ação indenizatória contra o Estado do Amazonas, pedindo reparação moral e material no valor de R$ 530 mil — cerca de 350 salários mínimos. A Procuradoria-Geral do Estado (PGE-AM) apresentou duas propostas de acordo, sendo a última no valor de R$ 50 mil, que foram recusadas pela parte autora.

O Ministério Público do Amazonas (MP-AM) instaurou um Procedimento Investigatório Criminal (PIC) para apurar as denúncias, sob responsabilidade do Gabinete de Assuntos Jurídicos (GAJ) Criminal. O órgão também enviou uma comitiva à Cadeia Pública Feminina de Manaus para colher o depoimento da indígena, além de determinar o deslocamento de uma equipe multidisciplinar até Santo Antônio do Içá para prestar assistência psicossocial aos familiares da vítima.

Para a procuradora-geral de Justiça, Leda Mara Albuquerque, o caso representa uma grave violação de direitos humanos e expõe falhas estruturais no sistema penitenciário do interior do estado. “Esta mulher foi vítima de uma violência praticada por pessoas que deveriam salvaguardar sua integridade”, afirmou. Segundo a procuradora, os estabelecimentos penais do Amazonas, sobretudo no interior, descumprem de forma sistemática a Lei de Execução Penal.

A Defensoria Pública do Estado (DPE-AM) confirmou ter recebido a denúncia em 28 de agosto de 2023 e declarou que conduziu o caso com “máxima cautela”, devido ao risco de retaliações contra familiares da vítima, que ainda residem no interior. Segundo os defensores que atuaram no caso, a mulher estava em estado de profunda debilidade emocional, recusando-se a se alimentar e chorando constantemente. A instituição também solicitou, sem sucesso, que a mulher fosse transferida para o regime domiciliar, reforçando que as condições em que ela foi custodiada violaram normas internacionais de direitos humanos.

A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) também se manifestou. A autarquia acionou sua Procuradoria Federal Especializada, a Corregedoria-Geral do Sistema de Segurança Pública e outras instituições, como o Ministério da Mulher, para garantir a apuração do caso e a adoção de medidas protetivas. A Funai também solicitou acesso aos procedimentos administrativos e processos judiciais relacionados à denúncia, além de cobrar o afastamento imediato dos agentes mencionados pela indígena.

A Secretaria de Segurança Pública do Amazonas informou que foram instaurados procedimentos administrativos pela Corregedoria-Geral do Sistema de Segurança Pública, pela Polícia Civil e pela Polícia Militar, que apura os fatos por meio de um Inquérito Policial Militar sob sigilo.

Apesar da gravidade da denúncia e das comprovações iniciais, até o momento nenhum dos acusados foi formalmente indiciado. A vítima, que permanece presa em Manaus, segue sob tratamento psicológico e psiquiátrico, fornecido pela Seap. Segundo sua defesa, ela foi diagnosticada com depressão severa.

O caso acende o alerta sobre a ausência de políticas específicas para a custódia de mulheres — especialmente indígenas — no sistema prisional do Amazonas. “Não podemos mais aceitar que mulheres sejam custodiadas em condições tão degradantes”, declarou a procuradora Leda Mara. “O que essa mulher enfrentou é inaceitável”.


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