Territórios

Especial: Povos indígenas e periféricos são os mais expostos a desastres climáticos na Amazônia

Série de reportagens “Vulneráveis do Clima”, da InfoAmazonia, revela como jovens, mulheres, pretos, pardos e indígenas da região vivem sob risco permanente de erosões, deslizamentos e falta de acesso a direitos básicos em meio à crise climática

Por Jullie Pereira e Karina Pinheiro

Na Amazônia, a crise climática tem rosto, cor, classe e território. Um mapeamento inédito da InfoAmazonia revela que os grupos mais vulneráveis a desastres ambientais — como alagamentos, deslizamentos, inundações e erosões — são majoritariamente mulheres, pessoas pretas ou pardas, jovens e indígenas. Eles vivem, em sua maioria, nas periferias urbanas e em comunidades tradicionais sem acesso pleno a saneamento básico, infraestrutura ou políticas públicas adequadas.

A série especial “Vulneráveis do Clima”, produzida com apoio do Instituto Serrapilheira e da Rede Cidadã InfoAmazonia, reúne dados inéditos cruzando informações do Censo 2022 (IBGE) e do Serviço Geológico do Brasil (SGB). O levantamento identificou que dos 772 municípios da Amazônia Legal, 290 têm áreas de risco geológico alto ou muito alto. Nessas localidades, populações já afetadas pela desigualdade social são empurradas para áreas instáveis, onde desastres ambientais têm sido cada vez mais frequentes e letais.

Manaus: risco urbano, falta de saneamento e tragédias recorrentes

Na capital amazonense, 85% da população que vive em áreas de risco está exposta a desastres como deslizamentos e alagamentos. Em comunidades como a Fazendinha, no bairro Cidade de Deus, famílias já perderam tudo — inclusive vidas — para os efeitos da negligência ambiental e da ocupação urbana desordenada.

Francisca dos Santos e Markatison Quintino, por exemplo, perderam a filha Mirella, de 7 anos, soterrada após um deslizamento em 17/01/2022. Três anos depois, Mariele da Costa, moradora da mesma comunidade, salvou suas duas filhas por segundos, após outro deslizamento atingir sua casa em 19/03/2025. Sua vizinha e vice-presidente comunitária, Sammya Maciel, morreu tentando ajudar outras famílias.

A análise da InfoAmazonia mostra que 55% das moradias em áreas de risco são chefiadas por mulheres. Jovens com menos de 30 anos representam 51%, e pessoas pretas ou pardas, 81%. Cerca de 75% dessas casas não têm acesso à rede de esgoto. Em Manaus, comunidades como a Fazendinha surgem da falta de alternativas habitacionais seguras. Em muitos casos, as famílias adquirem terrenos irregulares por valores baixos, sem saber que estão em áreas instáveis, como conta o geógrafo Fernando Monteiro (UFAM).

Tabatinga: indígenas à margem da margem

Enquanto as grandes cidades enfrentam os efeitos da ocupação urbana sem planejamento, populações indígenas lidam com uma outra face da crise climática. Em Tabatinga, no extremo oeste do Amazonas, 65% das pessoas que vivem em áreas de risco são indígenas — a maior proporção da Amazônia Legal. A Terra Indígena Tikuna Umariaçu, onde vivem cerca de 8 mil pessoas, é uma das mais afetadas por desastres ambientais no município.

Indígenas da comunidade Umariaçu, em Tabatinga, vivem sob o medo de terem suas casas engolidas pela erosão, popularmente conhecida como terras caídas Foto: Pedro Federal/InfoAmazonia

Moradores relatam o avanço das chamadas “terras caídas” — processo erosivo causado pela força das águas do rio Solimões — que engolem moradias, plantações e infraestrutura. “A cada cheia, a terra vai cedendo. Já perdi mais de 100 metros de terreno em dez anos”, afirma o pescador Alessandro. A casa do agricultor Paulo Pinto, por exemplo, está praticamente pendurada num paredão de barro.

Segundo o geólogo Elton Andretta, do SGB, a instabilidade é agravada por igarapés e lagoas que escoam por dentro do solo, desagregando os sedimentos e acelerando os deslizamentos. A ponte que liga as comunidades Umariaçu I e II também corre risco de desabamento, afetando o transporte de pacientes indígenas.

A crise hídrica se soma à geológica. Apenas dois dos quatro poços existentes nas comunidades funcionam, e não dão conta de abastecer todas as casas. “A água vem uma vez por semana e bem fraca”, relata a agricultora Leonora Cândido. A única caixa d’água de Umariaçu II foi condenada pela Defesa Civil por risco de desabamento, mas segue em uso.

A insegurança alimentar também se intensificou. A cheia do Solimões em 2025 destruiu plantações inteiras. Francisco Guedes Emílio, de 63 anos, perdeu 2 mil bananeiras e mais de 350 pés de mandioca e frutas. Sem apoio público, ele agora tenta sobreviver da pesca.

Invisibilidade e ausência do poder público

Apesar de estarem mapeadas pelo Plano Municipal de Redução de Riscos (PMRR) de Tabatinga, as comunidades Umariaçu I e II não recebem ações estruturantes. A última vistoria da Defesa Civil ocorreu em maio de 2025. Já o Plano de Contingência Municipal reconhece que 78 famílias indígenas vivem em áreas de risco elevado, mas medidas efetivas não foram implantadas.

O retrato se repete em Manaus. As moradias construídas por programas como o Minha Casa Minha Vida não são adaptadas à realidade amazônica, como explica a assistente social Najara Amaro. Muitas famílias vivem em imóveis sem esgoto, longe de escolas, saúde ou transporte. Casas de alvenaria substituem palafitas, ignorando os ciclos naturais da região.

Segundo a InfoAmazonia, a crise climática não criou a vulnerabilidade — apenas agravou condições já precárias. A ausência histórica de políticas públicas adequadas empurrou os mais pobres e os povos tradicionais para as margens da cidade e dos rios. Agora, os eventos extremos se encarregam de expor — e ampliar — essa desigualdade.


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