Embora o governador Wilson Lima (União Brasil) garanta em entrevistas dadas a veículos de comunicação próximos que a mudança na gestão dos Hospitais 28 de Agosto e Dona Lindu em Manaus não causará impactos no atendimento à população, informações e documentos obtidos pelo Vocativo mostram o contrário. Médicos ouvidos em condição de anonimato alertaram que algumas mudanças planejadas pela Associação de Gestão, Inovação e Resultados em Saúde (AGIR), nova gestora do complexo hospitalar, podem sobrecarregar o setor de ortopedia da rede pública de saúde.
A mudança de gestão no complexo foi anunciada no último dia 17 de setembro. Desde o dia 1º de dezembro deste ano, o Hospital e Pronto-Socorro 28 de Agosto e Instituto da Mulher Dona Lindu foram unificados, formando o Complexo Hospitalar Sul, ficando sob gestão da (Organizações Sociais de Saúde) AGIR. Segundo nota enviada ao Vocativo pela Secretaria de Estado da Saúde (SES-AM), o objetivo da mudança é a redução de custos.
“As OSS’s, por sua natureza jurídica, oferecem oportunidades para a redução dos custos operacionais em comparação à Administração Direta da SES/AM, pois permitem maior flexibilidade na contratação de serviços, aquisição de medicamentos e produtos de saúde, além de locação de equipamentos de forma mais ágil, o que contribui para a redução de custos e eliminação de taxas administrativas que aumentam o custo da prestação de serviços”, explicou a secretaria. Embora fale de valores menores, a transação custará aos cofres públicos o valor global de R$ 2 bilhões, que foi assinado no dia 29 de novembro e tem validade de cinco anos.
Reunião suspeita
Antes da assinatura, a primeira polêmica: Registros no Instagram do Instituto Brasileiro das Organizações Sociais de Saúde (IBROSS) mostrou uma reunião entre a secretária de saúde do Amazonas, Nayara Maksoud, com a secretária executiva adjunta Kamila Pinheiro, e o médico ortopedista Sérgio Daher, superintendente de relações institucionais da Agir e presidente do IBROSS cerca de quinze dias antes do chamamento público. Deputados de oposição falaram em indícios de favorecimento, mas até agora o Ministério Público do Estado não se manifestou.
Diminuição de atendimento
A justificativa utilizada pelo governo do Amazonas para a troca de gestão foi um estudo realizado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) apontando que a OSS iria reduzir 89 milhões em sua gestão. Segundo o levantamento, enquanto o governo do Amazonas utiliza R$ 134 milhões anualmente, a Organização promete utilizar “apenas” R$ 45 milhões, reduzindo R$ 89 milhões. “A pergunta é: vai ter serviço mesmo ou é o Estado que está gastando mais?”, questionou o deputado estadual de oposição Wilker Barreto.
E a preocupação se justifica. Laís Ribeiro, ortopedista e sócia do Instituto de Traumato-Ortopedia do Amazonas (ITOAM), usou suas redes sociais para denunciar a diminuição do número de médicos no setor de ortopedia do hospital 28 de Agosto. “Hoje nós temos um quadro de 12 ortopedistas, que fazem as funções de prescrever, canal de urgência, fazer cirurgia, além de mais de 100 pacientes internados. E esse número foi reduzido para 4”, alertou a médica.
Questionada pelo Vocativo, a SES-AM negou a informação, se referindo ao quadro total de profissionais. “Não é verdadeira a informação que apenas cinco cirurgiões estão atuando nas unidades. Atualmente o Complexo Hospitalar Sul dispõe de 71 médicos em diversas especialidades atuando normalmente no plantão, conforme foi constatado hoje (19/12) pelo Conselho Regional de Medicina (CRM)”. O problema é que a informação divulgada por Laís é verdadeira, como pode ser constatado na nova escala de ortopedistas do complexo hospitalar, o qual o Vocativo teve acesso.

A ortopedista Carol Antony Hoaegen também utilizou as redes sociais para alertar sobre a possibilidade de colapso deste setor do hospital. “O contrato que o governo fez com essa empresa reduz a quantidade de leitos do Hospital 28 de Agosto em até 1 terço e a quantidade de leitos para 36 leitos ortopédicos”, denunciou a médica. “Não precisa ser muito bom em matemática e nem um conhecedor do nosso estado pra gente saber que todas as demandas da cidade de Manaus e dos interiores, a gente atende tudo aqui em três grandes pronto-socorros”, alertou.
Há outro ponto importante: por lei, cada procedimento cirúrgico deve ser acompanhado por dois cirurgiões. Isso porque caso um tenha algum problema durante a operação, outro possa continuar sem prejuízos para o paciente. Se essa escala se mantiver, faltarão profissionais no atendimento, sobrecarregando outros hospitais da rede pública do estado.
“O número de traumas e acidentes só aumentam a cada dia. Então, fica a pergunta: como vai ficar a saúde do Amazonas? É realmente preocupante porque a gente não sabe como as pessoas vão ser atendidas, como elas vão ter suporte, sendo que o 28 de agosto é responsável não só por Manaus, mas de pessoas de todas as cidades do interior”, alerta Laís.
Porta aberta ou porta fechada?
Em comunicado oficial no último dia 16, o governo do Amazonas afirmou que “o HPS 28 de Agosto e o Instituto Dona Lindu continuarão sendo unidades de porta aberta, atendendo as mesmas especialidades, operando 24 horas por dia, sete dias por semana”. Para quatro profissionais de saúde, incluindo uma dirigente de classe, ouvidos em condição de anonimato, com o modelo atual, isso será impossível.
“Quatro ficam na porta para atender toda a demanda do 28 de agosto, e para atender toda a demanda da dona Lindu. Isso é inviável. Mas enfim. Eles vão reduzir o número de atendimentos, vão começar a fechar a porta, e aí com baixo número de atendimentos, com essa quantidade de plantonistas, é possível dar certo”, disse a profissional que não quis se identificar.
O caso é que esse “dar certo”, segundo a profissional, é relativo. “Agora, com a OSS, eles estão dando alta de todo mundo, eles estão barrando a entrada de muitos pacientes, ou seja, esses cirurgiões que estão lá eles podem dar conta sim, mas também por conta do número reduzido de pacientes. O que vai acontecer é que vai superlotar o João Lúcio e o Platão Araújo, que já está superlotando, que a gente já está levantando esses números, e já está superlotando esses outros hospitais”, alertou a fonte anônima.
Substituição de profissionais
Ao longo dos últimos dias surgiu um conflito de narrativas a respeito da permanência de profissionais de saúde do Instituto de Cirurgia do Estado do Amazonas (ICEA) durante a transição da nova OSS gestora do complexo hospitalar.
Ouvido pelo Vocativo, o ICEA afirmou que solicitou informações sobre as cláusulas contratuais e não obteve resposta do governo do Estado. O Instituto afirmou ainda ao site ter sido surpreendido com uma tomada de preço de duas horas pela Agir para a contratação de novos profissionais, como mostra o site do Portal da Transparência.

Apesar de citar o Conselho Regional de Medicina do Amazonas (CREMAM) como uma referência, o próprio divulgou vídeo nas redes sociais confirmando o péssimo quadro da saúde pública no Amazonas, bem como a falta de definição sobre a falta de pagamento dos médicos do estado.
“O sistema público de saúde está caótico porque o governo está caótico e não transfira responsabilidade para outros funcionários. Nós esperamos que a imprensa divulgue esse nosso pronunciamento para mostrar E nós não somos acostumados com o caos e a saúde do estado da Amazônia de estar passando”, alertou Ademar Carlos Araújo, conselheiro efetivo do CREMAM.
Salários atrasados
Além da incerteza sobre o fluxo de atendimento no o Complexo Hospitalar Sul, resta ainda a indefinição sobre o pagamento dos salários atrasados dos profissionais de saúde. “Desde o final do ano passado, o governo já tem um certo atraso com a gente de pagamento, tendo que negociar os dois últimos meses do ano passado pra ser parcelado em sete vezes ao longo desse ano, do nosso salário, tá? E a gente, como sempre fica de mãos atadas, sendo serviço essencial pra população, a gente manteve o nosso posto de trabalho, mesmo tendo um recebimento de salário parcelado”, protestou a médica Carol Antony em seu perfil no Instagram.
Se antes a situação já era ruim, piorou no segundo semestre. “Desde agosto a gente não tem mais nenhum salário recebido. Falo pela nossa empresa Ortopedia, mas eu também tenho outras empresas médicas que passam pela mesma situação. Feito isso, a gente segue tendo que trabalhar, mesmo não recebendo, porque o governo tem um prazo de 90 dias com a gente, ou seja, mesmo que a gente não receba por 90 dias, a gente é obrigado a manter a prestação do nosso serviço”, afirmou a Antony.
“Isso é realmente caótico, porque todos nós temos família, temos contas a pagar, temos responsabilidades, então a gente não consegue ficar sem se programar quanto a isso. Além disso, nós também não podemos parar de trabalhar, então nós estamos sem receber e indo trabalhar ao mesmo tempo”, lamenta Laís Ribeiro. “Como tem dinheiro para pagar empresas de fora, e não tem dinheiro para pagar os nossos salários atrasados desde setembro? É apenas isso que a gente quer saber.
Descubra mais sobre Vocativo
Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.

