Engrenagens

No Amazonas 92,6% dos mortos por policiais em 2023 eram negros

Mesmo com mais da metade dos casos sem identificação de cor e raça, 92,6% das pessoas mortas em decorrência de intervenção estatal no Amazonas eram pretos e pardos. Manaus concentra quase metade das mortes, sendo todas as vítimas homens

Em 2023, o Amazonas passou a fazer parte dos estados monitorados pela Rede de Observatórios da Segurança: nesse  ano, foram contabilizadas 59 mortes decorrentes de intervenção do Estado, com redução de 40,4% da letalidade em relação ao ano anterior. O Amazonas também se destacou pela falta de dados, já que em mais da metade dos casos (54,2%) não foram informadas a raça e a cor das vítimas. Entre os óbitos registrados, 92,6% eram pessoas pretas e pardas. 

No boletim Pele Alvo: mortes que revelam um padrão, que será lançado em 7 de novembro, os dados obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI), junto à Secretaria de Segurança Pública e órgãos correlatos do Amazonas, revelam que além da falta de transparência, é preciso se atentar à designação racial, que não é suficiente para entender a realidade do Amazonas. A aplicação padrão de instrumentos de classificação invisibiliza a população indígena, enquadrada como parda em diversas bases de dados. Pardos são a mistura de duas ou mais opções de cor ou raça, incluindo branca, preta e indígena, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Seguindo esta classificação, no Amazonas, por exemplo, não é possível uma análise aprofundada étnico-racial, pois 24 das 27 vítimas, que tiveram registro de raça e de cor, foram consideradas pardas. 

Os dados demonstram uma mudança na distribuição territorial da letalidade provocada pela polícia. Em 2022, a capital concentrava 61,6% dos casos; no ano seguinte, 54,2% das vítimas viviam em municípios do interior, com destaque para Rio Preto da Eva, cidade que tem menos de 1% da população amazonense, mas acumulou 15,3% dos óbitos. Além disso, o município não está localizado na calha dos grandes rios e, portanto, fica fora da rota do tráfico de drogas, contrariando a principal justificativa da ação violenta de agentes de segurança, ou seja, a de guerra às drogas. 

“É muito importante termos o Amazonas nesta base de monitoramento da Rede de Observatórios. São diversos os olhares para aprofundar, como a classificação étnico-racial, a interiorização da letalidade causada por agentes de segurança e compreender a redução do número de óbitos sem a criação de qualquer política pública específica e coincidindo com a investigação sobre o envolvimento do secretário de Segurança Pública com o tráfico de drogas”, destaca Tayná Boaes, pesquisadora da Rede de Observatórios da Segurança no Amazonas. “Mas  com os dados disponíveis já podemos refutar do imaginário coletivo a ausência de forças de segurança pública no interior e nas fronteiras nacionais, já que o número de óbitos aponta para uma violenta presença militar no território amazonense”, completa.  

A juventude mais uma vez foi a parcela da população mais afetada pelo comportamento agressivo de agentes de segurança, com 69,5% das vítimas tendo entre 12 e 29 anos.

Mortes que revelam um padrão

O novo boletim Pele Alvo: Mortes Que Revelam Um Padrão, organizado pela Rede de Observatórios da Segurança evidencia a norma da letalidade da ação policial. Em 2023, pelo menos sete pessoas negras foram mortas pela polícia a cada dia nos nove estados monitorados — Amazonas, Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo. Ao todo, foram 4.025 vítimas. Destas, 3.169 tiveram informadas suas raça e cor, e 2.782 dos mortos (87,8% desse total)  eram negros. 

O estudo mostra que 4.025 pessoas foram mortas por policiais no Brasil em 2023. Em 3.169 desses casos foram disponibilizados os dados de raça e cor: 2.782 das vítimas eram pessoas negras, o que representa 87,8%.Em todos eles, o padrão é de uma proporção muito alta de pessoas negras mortas por intervenção do Estado: Amazonas (92,6%), Bahia (94,6%), Ceará (88,7%), Maranhão (80%), Pará (91,7%), Pernambuco (95,7%), Piauí (74,1%), Rio de Janeiro (86,9%) e São Paulo (66,3%).

Para a cientista social e coordenadora da Rede, Silvia Ramos, os números são “escandalosos” e reforçam um problema estrutural do país: o racismo que atravessa diferentes áreas como educação, saúde, mercado de trabalho, mas que tem sua face mais crítica na segurança pública.

Na análise por estados, a Bahia é a unidade da Federação com a polícia mais letal, com 1.702 mortes. Esse foi o segundo maior número já registrado desde 2019 dentre todos os estados monitorados. Na sequência, vem Rio de Janeiro (871), Pará (530), São Paulo (510), Ceará (147), Pernambuco (117), Maranhão (62), Amazonas (59) e Piauí (27).

“O que a gente vê na Bahia é uma escalada. Desde que a Rede começou a monitorar o estado, houve um aumento de 161% nas mortes. De 2019 a 2023, aconteceu o seguinte dentro da polícia baiana: em vez de coibir o uso da força letal, houve incentivo. Pode ter certeza, não é só porque os criminosos estão confrontando mais a polícia. É porque tem uma polícia cuja ação letal foi liberada”, diz a cientista social. “Se os policiais matam muito, recebem congratulações dos comandantes e incentivos institucionais, a tendência é que tipo de ação violenta seja cada vez mais incentivada”.

Juventude 

O estudo também destaca que a juventude é a parcela da população mais vitimada pela polícia, principalmente na faixa etária entre 18 a 29 anos. E cita o Ceará como exemplo negativo, onde esse grupo representa 69,4% do total de mortos. Ainda mais grave é o dado que indica que, em todos os estados analisados, 243 das vítimas eram crianças e adolescentes de 12 a 17 anos.

Particularidades regionais

Alguns estados tiveram redução na letalidade policial. Caso do Amazonas, onde ocorreu queda de 40,4% e mudança na distribuição territorial das vítimas: a maioria das mortes foi no interior do estado. Maranhão, Piauí e Rio de Janeiro também apresentaram diminuição da letalidade em relação a 2022: 32,6%, 30,8% e 34,5%, respectivamente. No Ceará e no Pará, foram registradas quedas mais discretas de mortes por intervenção do Estado: 3,3% e 16% respectivamente. Mas o número de vítimas negras aumentou em 27% no Ceará e em 13,7% no Pará.

Na Bahia, há uma crescente exponencial, com registro de três vítimas negras por dia em 2023. O número de vítimas aumentou em 16,1%. Pernambuco foi o estado que registrou o maior aumento no número de mortos, com 28,6% mais casos que em 2022. Já São Paulo quebrou o histórico de redução e aumentou em 21,7% os óbitos nas ações da polícia.

Dados ausentes

Pela primeira vez desde 2021, quando passou a integrar o estudo, o Maranhão forneceu dados de raça e cor de vítimas da letalidade policial. Mas de maneira incompleta: 5 a cada 7 vítimas não tiveram o perfil racial reconhecido, ou seja, a informação estava presente em apenas 32,3% dos casos. O Ceará teve uma leve melhora, mas 63,9% das vítimas ainda não têm raça e cor reconhecidas. No Pará, os não informados representam 52,3%.

No total, 856 vítimas não possuem registros de raça e cor nos nove estados. Os organizadores do estudo reforçam a importância de que os governos sejam transparentes e incluam esses dados em 100% dos casos para uma análise qualificada da realidade. Desta forma, afirmam, o Poder Público poderá direcionar esforços para uma sociedade mais segura para todos.

“Assim como aconteceu em 2019, primeiro ano de monitoramento para o boletim Pele Alvo, 2023 se destaca por ser ano de início do mandato de novos governadores estaduais. E é revoltante e angustiante não ter havido mudanças concretas em políticas públicas de segurança, considerando principalmente as desigualdades raciais. O que continuamos a observar são ações bárbaras sob a justificativa de guerra às drogas, com um impacto brutal para a sociedade, principalmente para a população negra, e a persistência de um padrão da letalidade policial”, diz a cientista social Silvia Ramos, coordenadora da Rede de Observatórios da Segurança.


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