Opinião

Editorial: Naquilo que lhe cabe, Lula precisa ser cobrado

Lula definitivamente não é Bolsonaro, mas ao tentar conciliar agronegócio e demarcação de terras indígenas, por exemplo, o petista permite uma disputa onde o lado com mais poder econômico vencerá (e ele perderá) sempre. Lula não entendeu que seu lugar não é no centro dessa disputa, mas do lado de quem o elegeu

Primeiro de janeiro de 2023. Com a recusa do então presidente Jair Bolsonaro (PL) repassar a faixa presidencial para o sucessor, Luís Inácio Lula da Silva (PT) é criada uma cerimônia repleta de simbolismo com a entrega sendo feita por mulheres negras, indígenas e outros representantes de segmentos sociais perseguidos para representar inclusão.

Um ano e oito meses depois, a falta de demarcação de Terras Indígenas, o aumento do índice de violência contra as mulheres e a destruição galopante nos principais biomas brasileiros quebram o cenário de otimismo e expõem uma dura realidade: a inclusão, até o momento, não passou de disso: simbolismo.

Quando alguém fora da extrema direita levanta críticas a Lula ou ao PT, surge uma reação raivosa de alguns militantes do partido que palavras de ordem, falácias e chavões como “vocês merecem a extrema direita no poder”, “depois a extrema direita volta e vocês vão reclamar”, “vocês vão trazer a extrema direita novamente ao poder” e coisas do tipo. E isso bloqueia os debates. E isso precisa acabar.

Pra começar, o óbvio: Lula não é Bolsonaro e jamais será. E é altamente improvável que qualquer gestão, especialmente a atual, se aproxime dos ataques sistemáticos e incessantes ao meio ambiente, ao estado democrático de direito e direitos sociais que se viu entre 2019 e 2022. Basta ter o mínimo de honestidade intelectual e inteligência pra concluir isso.

Também é preciso sempre ressaltar que Lula governa tendo ao lado o Congresso Nacional com a pior legislatura da história do país até o momento. Não só em incompetência como também na capacidade de produzir crimes e quebras de decoro parlamentar em série em sua maioria, tornando o processo democrático uma tarefa quase impossível.

Isso posto, é evidente que a cobrança sobre o atual presidente precisa acontecer, ainda que ponderada, justa e cuidadosa, tomando a medida exata das suas más escolhas quando elas acontecem. E sinto dizer, mas acontecem. Na verdade, algumas das estratégias escolhidas por Lula são um autêntico fiasco.

O dilema aqui é que a maior força de Lula também está sendo a sua maior fraqueza: a capacidade de conciliação. Tentar agradar ao mesmo tempo a volúpia do agronegócio, por exemplo, com a demanda dos povos indígenas ou o lobby pela exploração dos combustíveis fósseis com os apelos da comunidade científica pela mudança da matriz energética nacional não funcionará. Conter gastos junto ao funcionalismo ambiental federal em tempos de crise climática e governos estaduais tomados pelo bolsonarismo é outra decisão trágica.

Lula ainda não entendeu que seu papel não é ficar no meio dessa disputa, mas ao lado daqueles que o apoiaram e foram decisivos em sua eleição. Não foi o agro, que financiou com milhões de reais a eleição de vários políticos de extrema direita, quem votou no petista. Não foram os grandes exploradores madeireiros, do garimpo e da extração mineral em terras indígenas que o fizeram chegar ao poder. Na verdade, muitos financiaram a tentativa de golpe no 08 de janeiro de 2023 e tentarão de tudo para desestabilizá-lo sempre que possível.

Ao se colocar como conciliador de um conflito onde a proporção de forças é absurdamente desproporcional, Lula favorece (inadvertidamente ou não) o lado mais forte e predatório, que não é o da sua militância. Só que, com isso, ele próprio se enfraquece cada vez mais, porque o lado para o qual cede nunca o verá como aliado. É exatamente por isso precisa sempre ceder mais e mais ao chamado “Centrão” que basicamente representa esses interesses. O resultado é um governo que, mesmo tendo bons indicadores econômicos, governa com a faca no pescoço, rezando para ser salvo pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

E antes que alguém fale da falácia da “correlação de forças” com o Congresso, vale a lembrança da famigerada PEC dos Estupradores, onde a extrema direita e o Centrão unidos foram enquadrados por uma forte pressão da opinião pública e recuou em um projeto asqueroso que passaria com facilidade. Detalhe: essa pressão não contou com o governo. E se ambos se unissem? O fisiologismo do Centrão ainda seria tão forte assim?

Outra coisa que Lula e a militância petista mais beligerante ainda não entenderam é que boa parte dos opositores da extrema direita que votaram em 2022 não são apaixonados por ele. Saber colocar em seus devidos lugares – opostos, claro – Lula e Bolsonaro, entendendo a importância histórica do primeiro, não significa idolatrá-lo. Logo, não vão simplesmente engolir quebras de promessas e frases de efeito.

O fato é que a Amazônia está queimando, as demarcações de terras indígenas estão paradas e uma série de decisões condenadas pela comunidade científica no campo ambiental estão avançando com aval do governo Lula. Isso traz um agravante: antes, o PT funcionava de forma coesa como anteparo para ações da extrema direita. Agora, no poder, ao tentar conciliar com essa agenda, esse anteparo se foi.

Mesmo com o uso flagrantemente ilegal da máquina pública em favor do seu adversário em 2022, Lula foi eleito. Embora pareça uma margem pequena, essa vitória foi muito maior porque representou que o desejo do povo por mudança foi ainda mais forte do que essa máquina bilionária. Ao ignorar isso em nome de uma conciliação covarde, Lula não apenas trai sua própria história como quebra o compromisso com esse desejo.


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