Nos últimos anos, a Câmara Municipal de Manaus (CMM) tem sido palco de projetos discriminatórios, além de diversas declarações preconceituosas contra a comunidade LGBTQIAP+. Os autores, em geral, são vereadores membros da extrema direita da casa, na maioria dos casos ligados a igrejas evangélicas.
Na sequência de matérias que têm como objetivo orientar o eleitor antes das Eleições de 2024, o Vocativo fez um levantamento desses incidentes que mostram violações de princípios fundamentais de direitos humanos. Algumas das falas e leis aprovadas têm gerado reações intensas tanto na esfera pública quanto entre organizações de direitos humanos.
Declarações preconceituosas
O vereador Marcel Alexandre (PL), tem repetidamente manifestado opiniões contrárias aos direitos das pessoas transexuais. Em março de 2023, durante uma sessão na CMM, ele propôs um projeto de lei para limitar a participação de pessoas trans em esportes femininos. Alexandre mentiu e alegou que uma lutadora teria morrido em uma disputa de MMA contra uma adversária trans.

O vereador, que também é pastor da igreja da Restauração, afirmou ainda que as mulheres trans estão “ocupando espaços de mulheres biológicas” e sugeriu a criação de uma categoria esportiva separada para essas pessoas, referindo-se a elas como “mulheres fake”.
Em junho de 2024, Marcel Alexandre defendeu a proibição do uso de banheiros femininos por pessoas transexuais. Ele argumentou que essa prática compromete a dignidade e segurança de mulheres e crianças, como que associando transexuais ao risco de abusos. Como alternativa, sugeriu a criação de banheiros específicos para pessoas trans. “O direito à personalidade da pessoa transexual não pode se sobrepor ao direito à dignidade e privacidade de mulheres e crianças”, disse o vereador.
Outro vereador que se destaca negativamente com pauta anti-LGBTQIAP+ é Raiff Matos, também do PL do ex-presidente Jair Bolsonaro, é recordista de projetos que atacam a dignidade desses grupos na CMM. Na sessão de março de 2023, Matos chamou a participação de mulheres trans em esportes femininos de “aberração” e afirmou que homens biologicamente não deveriam competir em categorias femininas, especialmente em lutas.
O vereador se comprometeu ainda a usar seu mandato para barrar a participação de pessoas trans em campeonatos femininos. Além disso, Matos criticou eventos como a Parada LGBTQ+, questionando a legitimidade da existência de crianças trans e associando o movimento LGBTQ+ a questões morais negativas.
Matos também é autor do Projeto de Lei nº 454/2023, que propõe assegurar aos pais e responsáveis o direito de vedarem a utilização de materiais escolares em atividades pedagógicas de gênero. que não tenham sido previamente aprovados por eles.
A legislação brasileira garante autonomia pedagógica às instituições de ensino. Este projeto de lei terá que equilibrar o direito dos pais com essa autonomia, um desafio que pode gerar debates jurídicos significativos. Educadores expressam preocupação com a possibilidade de interferência excessiva no processo pedagógico, temendo que o veto possa limitar a diversidade de conteúdos e abordagens educacionais. Além disso, a Constituição assegura uma educação baseada nos princípios de pluralidade e diversidade.
Projetos discriminatórios
Mas os vereadores da extrema direita local não se resumiram a falar. Em agosto de 2024, em meio a debates acalorados, a Câmara Municipal de Manaus aprovou o Projeto de Lei N. 615/2021, apresentado pelo vereador João Carlos (Republicanos) que proibia a instalação e o uso de banheiros multigêneros em estabelecimentos públicos e privados na capital amazonense.

O projeto proíbe a instalação de banheiros que podem ser utilizados simultaneamente por homens e mulheres. Em substituição, exige que os banheiros sejam individuais e específicos para cada gênero, garantindo a privacidade dos usuários. Nos locais onde não for possível a instalação de banheiros separados, o uso alternado e individual será permitido, assegurando a segurança e privacidade.
João Carlos afirmou que a proposta tem como objetivo prevenir crimes contra a dignidade e liberdade sexual, especialmente em locais públicos e estabelecimentos de ensino. Segundo o parlamentar, a utilização simultânea de banheiros por pessoas de diferentes gêneros poderia aumentar o risco de abusos sexuais. Grupos de defesa dos direitos humanos, no entanto argumentam que a medida é discriminatória e não aborda o problema real da violência.
Exclusão do esporte
Em maio de 2023, o vereador Roberto Sabino (PODEMOS) apresentou à Câmara Municipal de Manaus o Projeto de Lei N. 310/2023, que estabelece o sexo biológico como critério exclusivo para definição de gênero em regulamentos de competições esportivas realizadas no município.
O PL 310/2023 determina que o sexo biológico será o único critério para definir a participação de atletas em competições esportivas promovidas ou apoiadas pelo Poder Público Municipal. A medida veda a participação de atletas transgêneros em categorias que não correspondam ao seu sexo de nascimento.

Segundo o vereador Sabino, as características “físicas e biológicas” são determinantes no desempenho esportivo, e que permitir a participação de atletas transgêneros em categorias que não correspondem ao seu sexo biológico poderia prejudicar a integridade das competições.
Histórico antigo
A cruzada da Câmara Municipal de Manaus contra a comunidade LGBTQIAP+ não é nova. Em janeiro de 2020, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) negou provimento a um Agravo Interno interposto pela CMM e manteve, na integralidade, o acórdão do Pleno do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM) que declarou a inconstitucionalidade dos art. 1.º e 2.º da Lei Municipal n.º 439/2017, os quais vedavam a inserção de orientação aplicada à implantação e ao desenvolvimento de atividades pedagógicas visando à reprodução do conceito de ideologia de gênero na grade curricular das escolas públicas municipais de Manaus.
Tática extremista
Para o professor e cientista político Helso Pinheiro, um bom parâmetro para o que acontece em Manaus está em países governados pela direita, onde frequentemente a comunidade LGBTQIAP+ também sofre ataques recorrentes. “O ex-presidente Bolsonaro tentou e conseguiu, de certa forma, impor um diálogo de que a única família, a única aceitação possível, era de heterossexuais. Então, eu acredito que parte dessa direita que navegou aí na onda bolsonarista tentou assumir esse discurso de negar uma sexualidade que não seja binária”, afirma.
“Isso acaba chegando nas câmaras municipais de não aceitar o diverso. As vezes parece que as pessoas tem dificuldade de aceitar o diferente. Muitas vezes essas pessoas querem universalizar o comportamento delas, as vezes por não aceitação do diverso, às vezes para esconder uma identidade, o que para mim é até pior”, lamenta.
Possíveis penalidades
A conduta desses vereadores obviamente fere a ética e o decoro de um agente público e pode ser enquadrado em lei. “Não é permitido à nenhum parlamentar atuar para a exclusão de qualquer pessoa de atividades esportivas de maneira discriminatória. Sua atuação deve estar sempre adstrita à Constituição Federal, que prevê a igualdade e a não discriminação como alguns dos direitos fundamentais”, afirma Fued Semen Neto, advogado e presidente da comissão de direito eleitoral da OAB/AM.
“Caso um parlamentar utilize de seu mandato para agir dessa forma, ele pode incorrer em diversas penalidades, dentre as quais: pode ser condenado pela prática de crime de discriminação, pode ser condenado pela prática de abuso de autoridade, pode ser alvo de censura ou repreensão pública e até de processo de cassação de mandato pela sua Casa Legislativa, por quebra do decoro parlamentar, explicou o advogado.
Dado curioso
Uma postura contraditória de uma das vereadoras de Manaus entre 2021 e 2024 é a da ereadora Professora Jacqueline (União Brasil), autora do Projeto de Lei N. 542/2023, que determina a fixação de avisos em estabelecimentos públicos e privados, proibindo a discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero.

O projeto, criado em outubro 2023, exige que os estabelecimentos comerciais e órgãos públicos fixem, em local visível, placas informativas que proíbam a discriminação com base na orientação sexual ou identidade de gênero. As placas devem ter dimensões mínimas de 50×50 centímetros e informar os meios para esclarecimentos, denúncias e reclamações.
No entanto, em março de 2024, a mesma vereadora Jaqueline assinou o PL 310/2023, que estabelece o sexo biológico como critério exclusivo para definição do gênero em regulamentos de competições esportivas realizadas no âmbito do município de Manaus.
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