Amazonas

Os muitos erros na cobertura do caso Djidja Cardoso

Criminalização prévia de dependentes químicos, espetacularização do uso de substâncias perigosas e desconhecimento dos efeitos da cetamina. O Vocativo ouviu especialistas que apontam falhas graves na cobertura do caso da morte da ex-sinhazinha Djidja Cardoso

A morte da empresária e ex-sinhazinha do Boi Garantido, do Festival Folclórico de Parintins, Dilemar (Djidja) Cardoso causou comoção em todo Amazonas. No entanto, o trato da tragédia (suposta overdose de cetamina), a divulgação dos bastidores e da repercussão do caso levantam uma série de questionamentos sobre a forma de atuação da imprensa e de influenciadores digitais nesse tipo de temática.

Desde esse triste acontecimento, as redes sociais foram inundadas de vídeos da ex-sinhazinha e sua família em situação degradante, divulgação de versões da polícia como se fossem fato consumado, desconhecimento sobre os efeitos da cetamina e a criminalização de dependentes químicos sem o devido processo legal. O fato é que a abordagem desse caso acabou se tornando um exemplo de anti-jornalismo.

Para olhar por outro ângulo sobre esse trágico acontecimento, o Vocativo conversou com uma série de especialistas que apontam diversos erros graves no trato da morte de Djidja Cardoso e que no futuro poderão trazer sérias consequências jurídicas tanto para comunicadores como agentes públicos.

O que se sabe até agora

Djidja foi encontrada morta no último dia 28 de maio, em sua casa, no bairro Cidade Nova, zona Norte de Manaus, com sinais de overdose de cetamina. A principal linha investigativa da polícia é que parte do núcleo familiar de Djidja Cardoso teria montado uma espécie de “seita” para justificar o consumo do medicamento, fato contestado pelos advogados de defesa. Ela, o irmão e a mãe já eram investigados por tráfico da substância.

Essa substância anestésica tinha inicialmente uso em animais, mas também é usada em casos de depressão severa. Seu uso excessivo, no entanto, causa efeitos alucinógenos, sensação de bem-estar e tem potencial sedativo quando usado como droga recreativa.

O que é a cetamina?

A cetamina é considerada uma das maiores revoluções em saúde mental das últimas décadas e começou a ser usada como anestésico na década de 1970, quando se observava que pacientes submetidos à substância tinham menos ansiedade e depressão. Ela é usada no tratamento de quadros depressivos mais graves e resistentes às medicações convencionais, benefício em pacientes com ideação suicida e no tratamento de pacientes com dores crônicas.

Segundo os Centros de Informação e Assistência Toxicológica da Universidade de Campinas (CIATox Campinas), a substância é um anestésico dissociativo com propriedades analgésicas e amnésicas comumente utilizadas na medicina humana e veterinária. Nos últimos anos vem sendo utilizada, devido a sua segurança, para procedimentos intra-hospitalares como, por exemplo, a sedação, principalmente em pacientes pediátricos. Ainda, do ponto de vista terapêutico, tem sido introduzida no cenário do tratamento da depressão refratária a outros medicamentos.

Em 2019, que o medicamento foi aprovado pelo Federal Drug Administration (FDA), órgão governamental dos Estados Unidos que faz o controle de medicamentos (humano e animal), para uso no tratamento de depressões resistentes. Ela também está presente na Lista de Medicamentos Essenciais da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Atualmente, a cetamina pode ser encontrada  de diferentes fontes de produção: farmacêutica, onde o seu uso é intra-hospitalar de forma controlada; veterinária, a qual também possui controle sanitário; mercado ilícito de drogas, onde não há nenhum controle e pode ser misturada a outras substâncias, elevando o potencial tóxico.

Linchamento virtual

A medida que as prisões e detalhes do caso eram divulgados pela Polícia Civil, a cobertura passou a adotar um tom perigoso. Com a força do jornalismo declaratório (onde afirmações são feitas sem espaço para contradição) criou-se a narrativa de que, de fato, existe uma “seita” liderada pela mãe e o irmão da ex-sinhazinha para o uso de cetamina. Vale lembrar que o uso terapêutico da substância é liberado e apenas o consumo recreativo proibido.

Segundo matéria do Fantástico desse domingo (09/06/2024), os investigadores estariam apurando também a participação de Bruno na morte da avó de Djidja, Maria Venina, de 82 anos, em junho do ano passado, em Parintins. Parentes teriam dito que Cleusimar, Djidja e Bruno aplicaram doses de anabolizantes na idosa, num suposto ritual da seita. Pra completar, há também a versão de que Cleusimar afirmara ter “poderes para ressuscitar a mãe”.

“A cetamina pode levar a este efeito, principalmente quando utilizada de forma crônica. Cabe ressaltar que a cetamina tem uma aplicação a nível hospitalar restrita, e por isso nestas situações não se observa esses efeitos, pois são usos pontuais deste fármaco”

André Valle De Bairros, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)

Dependentes fora da realidade

O grande problema é que, de acordo com a medicina, o uso contínuo da cetamina pode alterar a percepção da realidade, algo que poderia colocar em cheque a versão oficial de uma quadrilha pra o consumo da substância.

“A cetamina pode levar a este efeito, principalmente quando utilizada de forma crônica. Cabe ressaltar que a cetamina tem uma aplicação a nível hospitalar restrita, e por isso nestas situações não se observa esses efeitos, pois são usos pontuais deste fármaco”, explica André Valle De Bairros, doutor em Toxicologia e trabalhando na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

“Qualquer indivíduo que estiver sob ação da cetamina não é apto de responder por suas ações”

André Valle De Bairros, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)

Ainda segundo o toxicologista, a curto prazo, a pessoa exposta à cetamina tem a sensação de analgesia e ação hipnótica. Ou seja, diminuição da percepção da dor e indução ao sono. Como é dissociativo, o paciente perde a noção de realidade caso ainda esteja acordado, e também leva a amnésia anterógrada (dificuldade de memorização de curto prazo). A longo prazo, a cetamina pode levar o indíviduo a dependência e ausência da percepção da realidade.

Ainda de acordo com De Bairros, quem está sob efeito contínuo dessa substância não pode ser considerado apto a responder por suas ações. “Qualquer indivíduo que estiver sob ação da cetamina não é apto de responder por suas ações. Nos EUA, cetamina e fenciclidina (uma droga ainda mais potente), observa-se pessoas andando nas ruas e não sendo responsivas, mesmo perante uma ordem policial, como se não entendessem o que estivesse acontecendo em sua volta”, alerta.

Sensacionalismo e imperícia jornalística

O papel de alguns veículos de imprensa e perfis apócrifos de Manaus também foi destaque negativo na cobertura do caso da morte da ex-sinhazinha do Garantido. Diversos vídeos com familiares e a própria Djidja Cardoso em situação degradante, consumindo a cetamina contaminaram as redes sociais.

“Espetacularizar a morte da ex-sinhazinha e dos fragmentos de comportamentos da família é a tinta mais realçada da cobertura. A sentença dos condenados (a pessoa que morreu e familiares) está dada numa versão misturada dos discursos a respeito da ação do diabo, de Deus e da perversidade humana celebrada por parte da mídia”

Ivânia Vieira – jornalista e docente da Universidade Federal do Amazonas (Ufam)

A narrativa está levando a opinião pública a culpar a mãe da empresária, a também empresária Cleusimar Cardoso pelo ocorrido, mesmo com as investigações ainda em curso, o que representa uma quebra da ética jornalística. Para a jornalista e docente da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Ivânia Vieira, a pressa em dar a notícia e a necessidade do engajamento tornaram a cobertura um espetáculo de sensacionalismo.

“Espetacularizar a morte da ex-sinhazinha e dos fragmentos de comportamentos da família é a tinta mais realçada da cobertura. A sentença dos condenados (a pessoa que morreu e familiares) está dada numa versão misturada dos discursos a respeito da ação do diabo, de Deus e da perversidade humana celebrada por parte da mídia”, afirma a jornalista.

Para Ivânia, O imediatismo não deveria ser o mecanismo da usurpação da qualidade da informação que é a meta do jornalismo. “Ao acatar e naturalizar a pressa e a velocidade, um tipo de jornalismo também naturaliza e aprofunda a superficialidade como conduta profissional. Torna-se parte do sistema que estimula e constitui o tribunal de exceção vigente nas redes sociais. A quem serve a manutenção dessa conduta? Quais valores a prática jornalística atende? Às favas o capital simbólico da credibilidade”, critica.

Vazamento de imagens

Um fato inquietante sobre a morte de Djidja são os constantes vazamentos de imagens dela e seus familiares completamente entorpecidos pela cetamina. Como os aparelhos celulares de todos os envolvidos foram apreendidos pela polícia, sugiram suspeitas de que o vazamento das informações pode ser interno.

“Vazamento de imagens de presos provisoriamente é crime de abuso de autoridade na lei de abuso de autoridade. Tanto é que a autoridade pode ser incriminada. Isso dá procedimento administrativo e ação penal contra essa autoridade”

Jacqueline Valles, jurista e conselheira do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

Até o fechamento deste texto, a assessoria de imprensa da Polícia Civil do Amazonas não se manifestou sobre possíveis vazamentos ou apurações junto à corregedoria, bem como outras perguntas levantadas pelo site.

Em se confirmando que foram agentes públicos que permitiram os vazamentos, todos poderão responder na esfera administrativa. “Vazamento de imagens de presos provisoriamente é crime de abuso de autoridade na lei de abuso de autoridade. Tanto é que a autoridade pode ser incriminada. Isso dá procedimento administrativo e ação penal contra essa autoridade”, explica a jurista Jacqueline Valles, conselheira do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

Processos judiciais

A proteção da imagem de uma pessoa falecida é garantida no artigo 20 do Código Civil. “São partes legítimas para essa tutela o cônjuge, os ascendentes e descendentes, e, embora de forma analógica, também os colaterais conforme o artigo 12, parágrafo único”, detalha Filipe Medon, mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Essa proteção, segundo Medon, é um direito dos vivos, pois a repercussão de violações aos direitos de uma pessoa morta afeta aqueles que com ela tinham uma relação de parentesco.

“A liberdade de imprensa pode autorizar certas exibições, mas é preciso avaliar cada caso para garantir que os direitos sejam preservados”

Filipe Medon – mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

Ao abordar a questão da violação do direito à imagem, Medon ressaltou a importância do consentimento. “Toda utilização não consentida da imagem de uma pessoa, fora as exceções previstas pela lei, não deve ser admitida”, afirmou. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem entendimento consolidado na Súmula 403, que reconhece dano moral em casos de exploração comercial de imagem sem autorização. No entanto, mesmo o uso não comercial pode gerar responsabilidade civil, embora não necessariamente um dano moral.

Medon destacou a necessidade de cuidado ao utilizar a imagem de pessoas falecidas, especialmente para evitar exposição sensacionalista ou vexatória. “Se uma imagem é utilizada para macular a honra da pessoa, expondo aspectos de sua intimidade ou situações constrangedoras, há responsabilidade, mesmo após a morte”, enfatizou.

Contudo, ele também reconheceu que o interesse jornalístico pode, em algumas situações, justificar a exibição de imagens sem consentimento, especialmente em contextos de interesse público ou investigação criminal. “Tudo depende do tipo de imagem divulgada. Se ela coloca a pessoa numa situação vexatória, em que imagens poderiam mostrar o uso de substâncias entorpecentes, a divulgação não deveria ocorrer”, afirmou Medon.

O advogado concluiu enfatizando a necessidade de uma análise cuidadosa e casuística para determinar se a exibição de imagens de pessoas falecidas lesa o direito à imagem, balanceando sempre o interesse público e o respeito aos familiares. “A liberdade de imprensa pode autorizar certas exibições, mas é preciso avaliar cada caso para garantir que os direitos sejam preservados”, finalizou.

Comportamento coletivo

Uma pergunta central ainda não respondida nem pela imprensa, nem pela Polícia Civil é como começou o contato desse grupo de pessoas com a cetamina. Bruno Ramos Gomes, psicólogo, doutor em saúde coletiva, e que trabalha com tratamento de cetamina para depressão considera importante responder essa pergunta, uma vez que há indícios de que Djidja sofria de quadro depressivo.

“Às vezes sim, o uso de uma substância pode criar, facilitar a pessoa acreditar, se deixar levar por isso no momento da alteração de consciência, pela vulnerabilidade que essa a experiência em si pode trazer”

Bruno Ramos Gomes – psicólogo, doutor em saúde coletiva, e que trabalha com tratamento de cetamina para depressão

“Essa substância tem esse efeito de alteração de consciência. A pessoa fica mais vulnerável e sugestionável, precisando de cuidados. As pessoas entram em dinâmicas grupais com ou sem substâncias. Mas, às vezes sim, o uso de uma substância pode criar, facilitar a pessoa acreditar, se deixar levar por isso no momento da alteração de consciência, pela vulnerabilidade que essa a experiência em si pode trazer”, alertou Gomes.

Um outro perigo apontado pela espetacularização desse caso é o gatilho que o uso de substâncias pode gerar em quem passa por abstinência. Além, é claro, da destruição prévia e sem julgamento de todos os envolvidos. “É prejudicial para a imagem dessas pessoas, porque o uso de drogas é algo extremamente estigmatizado na nossa sociedade”, avalia o psicólogo.

E para demais usuários, vídeos mostrando o consumo desse tipo de substância pode, sim, ser uma espécie de gatilho. “Ver cenas de uso de cocaína num filme atrapalha a pessoa está se cuidando e em tratamento mesmo quando já atingiu a abstinência que era desejado por ela para não ter o risco de algum gatilho”, alerta Bruno. “Às vezes, o que pode servir de gatilho para uma fissura, uma vontade muito grande de usar é isso, uma cena e alguma coisa que remeta ali a essa experiência para a pessoa”, lamenta.

O que as famílias podem fazer?

O grande problema é que especificamente para cetamina, não há uma abordagem específica para dependentes desta substância. “O tratamento de dependentes químicos é baseado no tipo de substância e seu respectivo grau de dependência. Caso seja uma dependência relativamente leve, tratamento é baseado em clínicas de reabilitação com auxílio psicológico e com determinadas atividades” afirma André Valle De Bairros.

No caso da família de Djidja, há possíveis alternativas. “Caso a dependência encontra-se com uma certa gravidade, há o uso de medicamentos como antidepressivos, sedativos-hipnóticos e outros conforme a exigência do paciente para auxiliar na reabilitação dos dependentes”, explica Bairros.

Famílias que tenham parentes ou amigos vítimas de dependência química possuem alternativas de ajuda dentro do Estado. No Amazonas, há três unidades pertencentes à Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e que são vinculadas à Secretaria de Estado de Saúde (SES-AM).

A primeira delas é o Centro de Saúde Mental do Amazonas (CESMAM), que tem como finalidade propiciar pronto atendimento às urgências e emergências psiquiátricas, assegurando acesso e integralidade no cuidado a pessoas com transtornos mentais severos e persistentes. 

Além dela, há ainda o Centro de Reabilitação em Dependência Química Ismael Abdel Aziz (CRDQ), que oferece tratamento em reabilitação de dependentes químicos em álcool e outras drogas, na modalidade de internação, que pode ser voluntária e involuntária, obedecendo legislação em vigor Lei nº 13.840/19, autorizada mediante laudo médico individual circunstanciado que caracterize seus motivos.

E por fim, o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Dr. Silvério Tundis, que oferece atendimento individual, em grupos, oficinas terapêuticas, visitas domiciliares, atendimento à família, atividades comunitárias, acolhimentos diurno e noturno durante a semana, feriados e finais de semana em alojamentos.

O acesso ao CAPS pode ser feito por demanda espontânea; por intermédio de unidade de atenção primária e/ou especializada e, ainda, referenciado após atendimento de emergência ou após internação clínica/psiquiátrica.


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