O Rio Grande do Sul vive aquela que é, até o momento, a maior catástrofe climática da história do Brasil. Ainda em meio ao caos causado pelas enchentes, o desespero das tentativas de resgate dos moradores da região e a perplexidade das imagens que surgem diariamente, resta a certeza de que a emergência climática já é uma realidade. E esta crise está relacionada com a destruição de outros biomas brasileiros.
Dados impressionantes
Até o início de maio, cerca de 90% dos municípios do estado já tinham sido afetados pelas fortes chuvas, segundo boletim da Defesa Civil. O balanço apontava na ocasião mais de cem mortes confirmadas (o número ainda subiria consideravelmente), todas decorrentes dos temporais e outros quatro óbitos em investigação.
Com 10,88 milhões de habitantes, de acordo com o Censo de 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), já são mais de 1,36 milhão de pessoas afetadas pelas chuvas que ocorrem desde 29 de abril, o que representa 12,55% dos habitantes do estado. O governo contabiliza ainda 155.741 pessoas desalojadas, e 48.147 pessoas estão temporariamente em abrigos.
Mudanças Climáticas
A crise do Rio Grande do Sul está inserida no contexto maior das chamadas Mudanças Climáticas. Nas últimas décadas, pesquisadores do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) da Organização das Nações Unidas (ONU) alertam que a influência humana levou o planeta à trajetória de aquecimento mais rápida em 2 mil anos e já produziu uma temperatura média que supera o período pré-industrial em mais de 1 grau Celsius (°C). E o problema está longe de ser uma novidade.
“É sabido que as mudanças climáticas iriam aumentar esses eventos extremos. Desde 2007 os modelos já mostravam que eles aumentariam no Rio Grande do Sul. O primeiro relatório do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas em 2013 alertou que o volume de chuva iria aumentar, tanto no verão quanto no inverno”, lembra Luciana Vanni Gatti, especialista em mudanças climáticas e coordenadora do Laboratório de Gases de Efeito Estufa do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
A importância dos biomas
No Brasil, a destruição de biomas como a Amazônia, a Mata Atlântica e o Pantanal é o principal fator de preocupação para cientistas em relação ao clima. Com a perda dessas florestas, perde-se também parte dos mecanismos de controle climático de todo o planeta. Isso porque a vegetação absorve o calor, resfriando a região onde está. Por isso, por exemplo, parques ou ruas arborizadas possuem temperatura mais agradável.
Sem essa vegetação, acontece o fenômeno conhecido como evapotranspiração, onde a água líquida no solo é jogada na atmosfera em forma de vapor. Para completar, com o aumento das emissões de gases de efeito estufa, acontece a aceleração dos eventos extremos porque causam o aquecimento da superfície do planeta, fazendo a água evaporar ainda mais. Ou seja, é um ciclo de retroalimentação de calor.
Múltiplos fatores
Nesse contexto, a catástrofe que ocorre no Rio Grande do Sul está associada a um conjunto de fatores, como a massa de ar quente e seco na parte central do Brasil que bloqueia as frentes frias e as mantém sobre o estado a influência do El Niño. Com esse fenômeno, os oceanos ficam mais quentes, algo que é agravado com o aquecimento global e interações entre os oceanos e atmosfera. E é justamente nesse ponto que a entra a participação do homem.
“Sabemos que grande parte da umidade que vem da Amazônia, passando pelo Oceano Atlântico, recircula na floresta, canaliza pelos Andes e desce, passando pelo Pantanal e pela Bacia do Prata, chegando às Cataratas do Iguaçu. Qualquer alteração nesses biomas impacta a quantidade de umidade aqui”, afirma Marina Hirota, Professora do Departamento de Física da Universidade Federal de Santa Catarina e uma das líderes de um estudo sobre ponto de não retorno da Amazônia.
“A destruição de biomas contribui para o aquecimento e tem impactos sobre o clima em escala regional. Por exemplo: estudos indicam que as mudanças de uso do solo no Cerrado, ou seja, na porção central do Brasil, já tornaram o bioma mais quente e mais seco (redução do retorno da umidade do solo e da vegetação para a atmosfera)”, explica Mercedes Bustamante, pesquisadora da UnB e membro da Coalizão Ciência e Sociedade.
Questões a serem respondidas
Apesar de muitas certezas, a tragédia no Rio Grande do Sul também trouxe muitas dúvidas. O maior causador da estiagem, segundo a dinâmica atmosférica, é uma massa de ar quente e forte sobre o Centro-Oeste e Sudeste, típica do inverno, mas que fica estacionária, impedindo a chegada de frentes frias. Essa massa de ar quente estacionária que bloqueou a entrada de ciclones e frentes frias.
“É intrigante como essa conjunção de fatores atmosféricos se deu em 2023, similarmente ao caso de São Sebastião, onde vários eventos se concentraram para gerar chuvas fortes e persistentes em um local específico”, avalia Marina Hirota.
“Imagine a massa de ar quente persistente e a frente fria chegando e arrastando tudo, fazendo o ar quente subir e gerar muita umidade. Para o evento extremo no Rio Grande do Sul, essa massa de ar quente parada teve um papel crucial. O que a manteve assim? Isso é outro estudo [a ser feito]”, sugere Hirota.
A influência de constantes destruições na Amazônia também precisam ser avaliadas, uma vez que ainda não se sabe se a umidade proveniente dela influenciou o evento. “Se há uma relação direta entre o efeito da Amazônia no sul do Brasil? Eu diria que sim. Mas se tudo na América do Sul está associado à massa de ar estacionária que agora se dissipa, precisamos de mais pesquisas. Mas agora que as frentes frias estão entrando no sul do Brasil, podemos investigar melhor”, confirma Marina.
Lições para o futuro
As pesquisadoras são unânimes em apontar que a conservação adequada da vegetação natural é urgente. Não apenas para mitigar emissões de gases de efeito estufa, como uma contribuição para a adaptação às mudanças climáticas, reduzindo seus impactos. “O Brasil precisa fortemente abordar as interações entre as mudanças regionais da cobertura de vegetação, as mudanças ambientais globais e nossos ambientes construídos como as cidades e infraestruturas críticas”, opina Mercedes Bustamante.
“A grande mensagem é que algo em um lugar do mundo pode ter impacto em outro que nem imaginamos. Não podemos mais pensar em fronteiras geográficas delimitadas. Estamos sujeitos a uma grande conectividade através dos fluxos da atmosfera, oceanos e da própria superfície”, alerta Marina Hirota. “É difícil saber qual foi o primeiro dominó que derrubou até chegar ao último, sem um estudo aprofundado. O importante é que tudo está interligado”, conclui a pesquisadora.
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