Durante crises de saúde como a pandemia da Covid-19, a concentração de serviços de média e alta complexidade em Manaus, além da má distribuição de serviços no interior é um dos fatores que contribui para o agravamento de emergências humanitárias. Uma pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Amazônia, publicada na revista científica “Saúde em Debate” no último dia 29 de março, mostrou que mesmo com os esforços para descentralizar o atendimento ocorrendo desde 2011, ainda há muitos problemas a serem resolvidos.
A descentralização dos serviços de saúde no Amazonas dividiu o estado em nove regiões. No entanto, o estudo revelou desafios na oferta de serviços médicos especializados, especialmente em áreas como pediatria, ginecologia e obstetrícia, e cardiologia. Embora a descentralização tenha sido feita, o investimento necessário para garantir a qualidade dos serviços nas regiões do interior não foi suficiente. Isso resultou em lacunas na prestação de cuidados de saúde essenciais, afetando negativamente o acesso à saúde das comunidades locais.
O município de Tefé, no Amazonas (distante 521 km de Manaus) que serviu como base para a pesquisa, é um dos exemplos mais didáticos. Mesmo sendo um polo de influência para municípios da região conhecida como Triângulo, conta com pouca contribuição estadual de investimento em saúde e pode enfrentar uma situação de sobrecarga de pacientes devido a essa falta de planejamento.
Segundo revela o trabalho, o planejamento em saúde da região não leva em conta os fluxos de pacientes do território. Os pesquisadores também apontam que esse planejamento falha em estabelecer uma rede regional que descentralize o Sistema Único de Saúde (SUS).
O estudo descreveu as articulações entre a atenção básica e a atenção especializada na região central do Amazonas a partir de dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) e dos agravos da região a partir de bases do DataSUS, no período de 2015 a 2019. Os especialistas também realizaram entrevistas com gestores de saúde regionais em setembro de 2020 e abril de 2021 para tentar entender as dinâmicas políticas da rede de saúde.
“Nosso estudo revelou uma necessidade crucial de articulação e pactuação de investimentos na área da saúde. É fundamental reconhecer que os investimentos em saúde, particularmente na atenção hospitalar, estão em constante crescimento. Isso se deve à demanda crescente da população, que enfrenta um envelhecimento demográfico e um aumento das doenças crônicas. Portanto, investir em saúde não é apenas um gasto, mas sim um investimento vital para garantir o bem-estar e a qualidade de vida de nossa comunidade”, avalia a pesquisadora coautora do estudo Michele Rocha El Kadri, da Fiocruz Amazônia.
Desafios logísticos
As longas distâncias acabam sendo um dos desafios enfrentados pelo atendimento em saúde nesta região. Todos os municípios no entorno de Tefé são só acessíveis por via fluvial, e o tempo desta locomoção depende da época de cheia ou seca dos rios. A distância entre Tefé e os demais municípios varia de 433 quilômetros (ou 10 horas e 47 minutos) a 32 quilômetros (ou 1 hora percorrida por lancha). Os pacientes com problemas de saúde mais urgentes são transportados por aeronaves à capital Manaus.
Segundo o trabalho, enquanto polos regionais como Tefé concentram equipamentos, profissionais e poder de decisão sobre o sistema de saúde, grande parte da extensão territorial dos municípios do interior do Amazonas permanece sem acesso a atendimento local e equipamentos de saúde. O acesso à saúde vai ficando mais restrito conforme o nível de complexidade da intervenção.
“É evidente que o Estado do Amazonas precisa aumentar seu investimento e participação ativa na área da saúde. Isso não se limita apenas ao financiamento, mas também à necessidade de uma maior articulação e diálogo entre os municípios. É importante destacar que, por lei, cada município tem a obrigação de fornecer assistência médica aos seus residentes. No entanto, para garantir um sistema de saúde eficiente e abrangente, é crucial que haja uma colaboração estreita entre os municípios e o Estado, buscando soluções conjuntas para os desafios enfrentados na prestação de serviços de saúde à população”, sugere El Kadri.
Além disso, outro ponto importante do estudo é levantar a questão da gestão tripartite na saúde entre governo federal, estados e municípios. Nesta região, o investimento em saúde acaba sendo subsidiado, na maior parte, pelo governo federal e pelo município de Tefé, que assume a responsabilidade de atender usuários de outros municípios.
“Um aspecto crucial que afeta especialmente os municípios-polo é o influxo de residentes dos municípios circundantes, sem uma pactuação efetiva em termos de cotas, financiamento e serviços prestados. Essa realidade destaca a necessidade premente de uma maior participação do governo estadual nessa questão. É essencial não apenas aumentar o financiamento, mas também promover uma articulação eficaz entre os municípios da região. Nosso artigo conclui enfatizando a importância dessa cooperação para garantir a qualidade e a equidade na prestação de serviços de saúde para toda a população da área”, pede a pesquisadora.
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