Contexto

PLC dos Aplicativos: Questão vai muito além do fim da CLT

Projeto de Lei Complementar dos Aplicativos vai permitir jornadas de trabalho de 12 horas? Vai destruir a CLT? Vocativo ouviu vários especialistas em direito do trabalho para tentar trazer luz sobre esse assunto. A conclusão: o trabalho como conhecemos vai mudar completamente

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou no último dia 04 de março de 2023 a proposta de Projeto de Lei Complementar (PLC) que regulamenta o trabalho de motorista de aplicativo em todo o país. Embora seja voltado para duas empresas em especial, a medida pode abrir caminho para a alteração de toda legislação trabalhista do país. O texto será enviado para votação no Congresso Nacional e, caso seja aprovado pelos parlamentares, passará a valer após 90 dias.

No texto, o governo propõe o valor que deve ser pago por hora trabalhada e contribuição ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), dentre outas mudanças, criando uma nova categoria de emprego: o trabalhador autônomo por plataforma. Apesar do discurso por parte de setores do governo ser de que a medida representa avanço, ela tem sido duramente criticada por alguns especialistas em direito do trabalho que apontaram pontos problemáticos.

Conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2022, o país tinha 778 mil pessoas trabalhando em aplicativos de transporte de passageiros, o equivalente a 52,2% dos trabalhadores de plataformas digitais e aplicativos de serviços. Outro indicador mostra que 70,1% dos ocupados em aplicativos eram informais.

O que muda na teoria?

Todos os especialistas entrevistados pelo Vocativo são unânimes em apontar a dificuldade extrema de regulamentar uma nova modalidade profissional. Segundo o próprio presidente Lula, o PLC pretende instituir uma nova categoria no Brasil, denominada trabalhador autônomo por plataforma.

Na teoria, essa nova modalidade desfrutará de uma autonomia inexistente para a maioria dos empregados regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), porém com a garantia de remuneração mínima, limitação de jornada e acesso a direitos sociais que, atualmente, não são usufruídos por trabalhadores autônomos tradicionais.

Com esse projeto, os motoristas e as empresas vão contribuir para o INSS, pagando 7,5% sobre a remuneração. O percentual a ser recolhido pelos empregadores será de 20%. Detalhe importante: o projeto é específico para motoristas de Uber/99, logo não se aplica sequer aos entregadores de comida de Rappi/IFood, por exemplo. Mulheres motoristas de aplicativo terão direito a auxílio-maternidade.

O ponto mais polêmico, no entanto, é a jornada de trabalho, que será de 8 horas diárias, podendo chegar ao máximo de 12. Não haverá acordo de exclusividade, ou seja, o motorista poderá trabalhar para quantas plataformas desejar.

Para cada hora trabalhada, o profissional vai receber R$ 24,07/hora para pagamento de custos com celular, combustível, manutenção do veículo, seguro, impostos e outras despesas. Esse valor não irá compor a remuneração, tem caráter indenizatório. Os motoristas serão representados por sindicato nas negociações coletivas, assinatura de acordos e convenção coletiva, em demandas judiciais e extrajudiciais.

12 horas de trabalho

Um dos pontos que mais gera dúvidas em relação ao PLC é o item que fala da possibilidade da jornada de 12 horas de trabalho ininterruptas. Há uma dúvida se a alteração seria equivalente ao regime de folga a cada dois dias, quando o trabalhador trabalha por dois dias consecutivos (12 horas cada) e, em seguida, tem um período de folga de 36 horas. Não é o caso.

Pelo texto do projeto, o trabalhador continuará podendo trabalhar as horas que forem necessárias para o seu sustento, sejam 2h, 3h, 8h,  até o limite máximo de 12 (doze) horas diárias de conexão numa mesma plataforma. No entanto, o projeto estabelece que não existe obrigação de aguardar 36 (trinta e seis) horas para se conectar novamente.

“Não é muito diferente da situação atual, pois a Uber hoje desconecta o motorista que ultrapassa 12 (doze) horas diárias na plataforma, com a diferença de que nova conexão só é permitida após 6 (seis) horas. Já o PLC não prevê horas mínimas de desconexão, mas apenas que este limite de 12 (doze) horas se dará “na forma do regulamento”. Ou seja, não entra neste assunto”, explica Susana Botár, advogada e doutoranda em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP.

“O Projeto não estabelece, em momento algum, uma carga horária mínima obrigatória para os trabalhadores enquadrados na categoria de trabalhadores autônomos por plataforma. Há, inclusive, disposição expressa contida no art. 3°, §1°, II, que veda qualquer imposição de exigências relativas a tempo mínimo de disponibilidade por parte desses trabalhadores”, “, avalia o advogado trabalhista Rafael Galle.

“Em outras palavras, nenhuma empresa de aplicativos poderá impor uma jornada de trabalho de 12 horas diárias aos trabalhadores, sob pena de descaracterização da relação de trabalho autônoma e possível reconhecimento de vínculo de emprego formal”, informa Galle.

“Vi outro dia num jornal dizendo que o motorista teria jornada de trabalho de 08h00, podendo chegar a 12 mediante negociação coletiva. No entanto, no projeto não consta nada disso. Só estabelece que ele pode chegar a 12h de conexão”, afirma Paulo Renato Fernandes, professor de direito da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (FGV DIREITO RIO). Fernandes espera que os debates legislativos esclareçam essas questões e ajustem o projeto para refletir a realidade do trabalho dos motoristas.

“Alguns aspectos, como a duração máxima do tempo de conexão, estão sendo questionados e podem ser revistos ou até mesmo retirados do projeto. Apesar disso, a ideia de uma jornada de até 12 horas não é vista necessariamente como prejudicial, especialmente quando consideramos que esse tempo inclui períodos de pausa e não apenas direção efetiva”, pondera o professor.

“Este é um indício de que o Ministério do Trabalho poderá regulamentar este prazo mínimo de intervalo depois de aprovada a lei. Ou, ainda, a própria categoria, por meio de seu sindicato, poderá negociar diretamente com as empresas”, avalia Susana Botár.

Debate no STF

Como os lados decidiram negociar, a Uber solicitou ao Supremo Tribunal Federal que suspendesse a tramitação dos processos sobre reconhecimento de vínculo de emprego entre motoristas e empresas de aplicativo. “Analisando os últimos julgamentos do STF sobre este assunto, era provável que a Corte decidisse que não havia direito ao vínculo empregatício, tal qual o Projeto. Isso se aplicaria para todos os processos do tipo no Brasil”, sugere Botár.

“Ocorre que o Supremo tenderia a piorar a situação, dizendo que os contratos seriam de natureza comercial, o que afastaria em definitivo a Justiça do Trabalho para a análise dos conflitos, quando, na realidade, é muito evidente que estas relações são do tipo trabalhista, e não comercial. Por isso, foi importante abrir a mesa de negociação e fazer este pedido de suspensão”, avalia Susana.

Se o PLC for aprovado na redação atual, todos os contratos atualmente em vigor passam a ser regidos pelas novas regras. Como o Projeto não afronta o entendimento que o STF vinha adotando até então, é provável que a Corte vá apenas ratificar que as relações contratuais são regidas nos termos da nova lei e que, por isso, todos os pedidos judiciais de vínculo de emprego devem ser rejeitados.

Agora, para os períodos anteriores, portanto, para assegurar direitos retroativos, até seria possível que o STF analisasse se, até a edição da nova lei, não seria cabível considerar vínculo de emprego. Ocorre que, dado o seu entendimento até então, isso é pouco provável.

“Acredito que a Suprema Corte dirá que os contratos estabelecidos antes da publicação da lei ou são de natureza comercial – o que, a meu ver, é errado – ou são relações de trabalho eventuais e não habituais, de autônomo e que, de todo jeito, não há direito à carteira assinada com CLT”, lamenta a advogada.

Negociações e protagonismo

Os juristas ouvidos pelo Vocativo reforçaram que o texto em questão ainda se trata de um debate inicial, cuja efetivação depende de análise e discussão no Congresso. Se o conteúdo dele contém propostas controversas, enquanto ele não for aprovado e sancionado, a categoria permanece sem qualquer regulamentação, sujeita às decisões judiciais das mais diversas naturezas.

“Agora, as entidades sindicais poderão representar os trabalhadores em negociação coletiva, o que representa talvez o maior avanço deste projeto. Hoje, a Uber e a 99 se recusam a negociar com representantes dos motoristas, o que torna difícil a conquista de direitos por esta categoria”, afirma Botár.

Fim da CLT

Muitos críticos do PLC alegam que ele poderia representar, na prática, o fim da chamada Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e abrir a brecha para que outras empresas de serviços diferentes se tornem plataformas para pagar salários mais baixos em piores condições aos trabalhadores. A questão, no entanto, é mais complexa.

“Isso já é uma realidade. Desde que a Uber chegou no Brasil há quase dez anos, pirateando as leis brasileiras, como fez no mundo inteiro, os chamados trabalhadores de aplicativo ou “plataformizados” não têm quaisquer direitos. E, hoje, já no Brasil existem aplicativos para outros tipos de serviços, como de ensino, na área de educação, em que as pessoas dão aulas a preços baixos e trabalham em jornadas exaustivas”, alerta Susana Botár.

Para todos os especialistas ouvidos nessa matéria, a plataformização veio para ficar e ela deve dominar o mundo do trabalho. “Os trabalhadores precisam, rapidamente, compreender o seu dever histórico de se organizar para pressionar por um novo marco legal que assegure direitos e dignidade a todos, independentemente daquele vínculo típico de emprego da CLT, com jornada fixa de 44 horas, 8h diárias etc”, sugere Botár.

Susana acredita que o caminho deve ser o protagonismo da classe no debate, negociando melhores condições em um novo contexto de trabalho. “A conclusão é que a classe trabalhadora não deve temer ou resistir à plataformização, mas encarar com ousadia e coragem estes novos tempos e não permitir que estas super corporações continuem à frente deste processo. Do contrário, a exploração não apenas continuará como se ampliará a todas as categorias”, pondera.


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