
No início de 2023, o país assistiu em choque à grave crise humanitária que se abateu sobre a Terra Indígena (TI) Yanomami, em Rondônia. As imagens de crianças em estágio avançado de inanição finalmente fizeram o restante do país perceber que a etnia enfrenta, há anos, uma realidade de miséria, desnutrição grave, malária, verminose, pneumonia e outras infecções respiratórias agudas. O principal catalisador dessa tragédia, segundo especialistas, é o garimpo na região.
Neste sábado (20/01/2024), completou um ano desde que o Ministério da Saúde decretou Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional. O objetivo da medida era restabelecer os serviços de saúde e socorrer parte dos cerca de 30,4 mil yanomami que vivem na região, além de combater à invasão de garimpeiros na área. Com cerca de 9,6 milhões de hectares, a reserva abrange parte do território de Roraima e do Amazonas, próximo à fronteira com a Venezuela. Cada hectare corresponde, aproximadamente, às medidas de um campo de futebol oficial.
Entre os anos de 2016 e 2020 – gestão dos governos Temer e Bolsonaro – houve uma assustadora explosão de índice de garimpo na região: 3.350%segundo relatório Yanomami sob Ataque. A omissão dessas duas gestões na área ambiental é apontada como catalisador desse problema. Acreditava-se que a mudança no planalto e a eleição de Luís Inácio Lula da Silva traria uma solução para o problema. Infelizmente não foi o que aconteceu. O Vocativo buscou especialistas para entender o que está acontecendo.
Área gigantesca
Segundo a ministra Sônia Guajajara e o secretário Weibe Tapeba, as medidas implementadas forçaram cerca de 80% dos garimpeiros ilegais a deixarem a região. Ainda assim, os problemas persistem. “Quem ficou dentro do território yanomami são as organizações criminosas; o crime organizado, que continua ameaçando e violentando meninas [indígenas]”, afirmou a ministra, garantindo que o governo federal segue empenhado em retirar todos os não-indígenas do território yanomami e restabelecer os serviços públicos na região.
Vulnerabilidade ao garimpo
A própria localização dessa Terra indígena dificulta a resolução da crise humanitária. A TI Yanomami tem algumas características que são bem específicas e que contribuem com a vulnerabilidade especial desse povo. “É um povo de contato recente, que tem pouca memória imunológica para as doenças que são trazidas de fora. Essa vulnerabilidade é geral. Eles não estão preparados, por exemplo, para o consumo de álcool ou, a grosso modo, qualquer interferência externa no modo de vida deles pode causar todo um desequilíbrio”, alerta Landgraf.
Com a presença do garimpo, muitos indígenas deixam de aprender a caçar e a cultivar e isso contribui para a insegurança alimentar que não é reversível a curto prazo. O garimpo também traz doenças como a malária, que é trazida não só pela circulação de garimpeiros, mas também por causa dos poços que eles abrem, fragiliza bastante a saúde da população.
Histórico do governo Lula
Embora seja visto como um presidente progressista, especialmente se comparado aos seus últimos dois antecessores, as gestões passadas de Luís Inácio Lula da Silva acumulam uma série de problemas em se tratando da questão indígena. “Para começar, eu não acho que o governo Lula seja exatamente pró indígena. Durante as eleições, houve uma tentativa de agregar esse setor que apoia os direitos indígenas e o próprio movimento indígena. Mas esse setor tem muita resistência ao PT, porque nos anos em que o PT esteve no governo, não foram bons anos para os direitos indígenas em diversos sentidos”, explica Luciana Landgraf, doutoranda em Antropologia na Universidade de Paris Cité.
“Desde o começo desse novo mandato, embora tenha sido mais atuante em relação à questão indígena do que o governo Bolsonaro, ele é um governo que tem procurado aí aliar as demandas do dos grupos dos povos indígenas com as demandas do agronegócio, que são demandas que são irreconciliáveis. Mas o governo Lula não é novidade. Hoje é um governo aí que é um governo de conciliação de classes e que vem tentando aí conciliar”, lamenta Camila Soares Lippi, professora da Universidade Federal do Amapá.
Lippi relembra a concordância do governo com a manobra do Congresso para retirar do Ministério de Povos Indígenas a competência de demarcar as terras indígenas e devolvendo essa competência para a Funai. Outro momento polêmico foi o projeto de lei sobre marco temporal pelo Congresso que foi à sanção do presidente Lula. “Existia uma demanda do movimento indígena de que esse projeto de lei fosse integralmente vetado pelo presidente Lula. Isso mostra como ele é um governo que tenta conciliar demandas que são irreconciliáveis, o que também está causando os problemas que nós estamos vendo”.
Militares
Outro elemento que vem sendo constantemente denunciado por envolvimento nessa crise são os militares. Na verdade, pode-se dizer que eles são uma das fontes do problema. “A presença de garimpeiros é algo que data da época da ditadura militar. Na verdade, essa ocupação por garimpeiros foi estimulada pela ditadura militar. É importante a gente mencionar que as Forças Armadas foram um ator fundamental para justamente para essa ocupação do garimpo da região. E ainda é o ator que hoje em dia está sendo mais reticente em relação à retirada desses garimpeiros das terras yanomami e isso tem causado problemas”, alerta Camila Lippi.
Segundo diversas reportagens da Agência Pública, ao longo dos quatro anos do governo Bolsonaro, o Comando Militar da Amazônia (CMA) assistiu à invasão do seu próprio território. Garimpos funcionaram a poucos quilômetros das instalações militares. Poucas ações pontuais, sem a capacidade de eliminar a infraestrutura milionária do garimpo, só serviram para maquiar o silêncio dos comandantes militares da região. Inúmeras denúncias das lideranças Yanomami caíram no vazio.
A relação entre militares e Amazônia foi alvo de estudo da professora Adriana Aparecida Marques do curso de Defesa e Gestão Estratégica Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. De acordo com a pesquisa, a identificação da Amazônia como prioridade estratégica das Forças Armadas vai além da segurança e defesa. A importância atribuída à região amazônica pelos militares resulta de uma intrincada relação entre interesses e elementos simbólicos. A categoria enxerga na região não apenas um espaço para ser defendido, mas para ajudar na construção do estado através da exploração.
Desde os anos 1970 há estudos sobre os problemas da região. E desde meados dos anos 2000 foram sendo instaladas bases de proteção etno-ambiental na TI Yanomami. O problema é que elas estão desativadas. “As últimas foram desativadas ainda no governo Temer. Deveria, por exemplo, ter uma base na entrada do Rio Uraricoera, em Roraima, que é um ponto super estratégico, por onde entra a maioria dos garimpeiros que entram por via fluvial. A grande maioria que entra por via fluvial entra por lá. Então assim tem um ponto que daria para fechar e impedir a entrada, mas enfim, não foi feito. E também é necessário ter controle aéreo. Não está tendo”, avalia Luciana Landgraf.
Para Landgraf, a única maneira de se proteger a terra Yanomami é com a presença constante do Estado. “Isso já foi feito entre o fim dos anos 90 e os anos 2000, com o pessoal de saúde trabalhando constantemente em área, com operações policiais regulares, com apoio das Forças armadas, etc. Eles [poder público] sabem muito bem o que tem de fazer. O que falta é coragem para fazer um investimento estrutural na proteção dessa terra”, avalia.
Descubra mais sobre Vocativo
Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.

