Opinião

Um perigo maior para o jornalismo do que a extrema direita

Se o jornalismo não consegue fazer uma autocrítica e entender a gravidade do risco de cooptação por forças políticas, algo está terrivelmente errado

O caso envolvendo a matéria do jornal O Estado de São Paulo sobre a visita Luciane Barbosa Farias ao Ministério da Justiça gerou uma fratura pública e uma série de embates entre jornalistas de todo o país, envolvendo inclusive associações e entidades de classe. Baixada a poeira, é hora de refletir sobre a hegemonia de grupos de imprensa do sudeste do país.

A matéria, como já foi explicado aqui, tem uma série de falhas graves que já foram apontadas por diversos colegas e veículos de todo o país, mas até o momento, não recebeu publicamente as devidas correções públicas. Mas, como sintoma mais flagrante, o termo “dama do tráfico” simplesmente desapareceu das manchetes, como praticamente toda menção ao assunto e seus desdobramentos.

Durante esse processo, jornalistas e a editora-chefe do Estadão em Brasília, Andreza Matais, foram alvos de ataques e exposição nas redes sociais. Em alguns deles, a situação chegou a tal ponto que Matais foi veiculada a em uma postagem com cartaz pelo youtuber Felipe Neto como “Dama das Fake News”. A postagem foi logo apagada e o influenciador se desculpou, mas o estrago já havia sido feito.

De imediato, associações de classe e diversos profissionais famosos do país prestaram solidariedade à Andreza e seus colegas. Justo. Afinal, esse tipo de linchamento virtual atenta contra direitos e garantias individuais, além de ter grafes efeitos na saúde mental de qualquer pessoa. Mas a crítica contra seus trabalhos é mais do que válida: é necessária.

Vem a pergunta: por que essa solidariedade e exigência de princípios éticos não foram dadas também para a própria Luciane? Ou para o jornalista Leandro Demori, alvo de questionamentos sobre seu salário no momento em que denunciou a falha crucial na reportagem, de que a ativista era inocente quando esteve em Brasília? Ou quando a própria Andreza expôs publicamente o salário de George Marques, assessor da Secretaria de Comunicação Institucional da presidência?

A desculpa de que se tratam de servidores públicos é risível. Pra começar, servidor público tem direitos e deveres. Os seus salários são, de fato, interesse público, mas quando expostos nas redes sociais para a extrema direita, torna essas pessoas alvo do mesmo tipo de linchamento virtual que Andreza Matais sofreu. E tal qual igualmente errado.

Veículos de comunicação são empresas. E como tal regidos pelo interesses dos seus donos. É preciso sim estarmos atentos para a possibilidade de que, em algum momento, esses interesses sejam contrários à democracia. Este ano, a Agência Pública divulgou documentos e testemunhos obtidos pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf), ligado a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) mostraram a colaboração da Folha de S. Paulo com a ditadura. Fosse, haveria nota de solidariedade para a Folha também?

Esse tipo de comportamento protecionista acontece também porque há uma hegemonia tóxica de veículos de propriedade de poucas famílias. Isso faz mal ao jornalismo, ainda que essas empresas, ao longo da nossa história, tenham abrigado grandes profissionais e prestado serviços históricos ao país.

Imaginar que toda a categoria do jornalismo é incapaz de errar ou mesmo invulnerável ao controle de forças políticas para fins não republicanos vai na contramão dos princípios éticos que norteiam a nossa profissão. E mais: não faltam exemplos pelo mundo de grandes corporações e partidos que usaram de capital pesado para comprar veículos de imprensa e torná-los armas de interesses particulares.

A extrema direita nos ataca incessantemente, mas não abala nossa credibilidade. Servir aos interesses de grupos particulares em detrimento ao bem público sim. Se o jornalismo brasileiro não consegue fazer uma autocrítica e entender a gravidade desse risco, algo está terrivelmente errado. Ética que só vale pra defender a categoria tem outro nome: corporativismo.


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