A vulnerabilidade social dos trabalhadores de aplicativos no Brasil tem sido alvo de constantes debates na opinião pública. Casos como o do entregador Gabriel Orleilson Garcia de Souza, denunciado pela parceria entre Vocativo e IntercePT Brasil em outubro de 2022 mostra expõe a falta de assistência a qual a categoria está exposta, fato que tem motivado inclusive uma série de disputas judiciais.
A legalização do vínculo legal entre empresas de aplicativos como Uber e Ifood e os trabalhadores também é uma pauta defendida pelo governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT), mas isso ainda parece distante. Até o momento, não há nenhuma movimentação no Congresso para aprovar leis do gênero e a nova gestão já descartou rever a Reforma Trabalhista de 2017.
Resta então, o judiciário. Recentemente a Justiça do Trabalho brasileira determinou que a Uber deve registrar todos os motoristas em regime da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Além disso, a empresa foi condenada a R$ 1 bilhão por danos morais coletivos. A empresa, no entanto, decidiu não acatar a decisão enquanto recorre e não é obrigada a pagar até que isso ocorra, o que pode levar anos.
“Como não houve nenhuma liminar deferida, a Uber não é obrigada a acatar qualquer decisão até o trânsito em julgado, sendo assim, ela deve apelar aos recursos que lhe cabe. Agora é esperar as decisões das turmas dos tribunais superiores”, explica .
A Uber se popularizou a partir da crescente adesão da sociedade a esse modelo de negócio, muito popular entre aqueles que buscam uma fonte de renda alternativa ou principal. A adesão em massa também se deve à precarização do trabalho no país, iniciado há alguns anos, chamado de “pejotização”, em referência ao processo de transformação de pessoas físicas em jurídicas.
“Esse sistema de “pejotização”, que se popularizou no Brasil, traz a ilusão que o trabalhador é dono do seu próprio negócio, quando na verdade precariza e deteriora os princípios do direito trabalhista”, opina o advogado trabalhista Kaique Araújo.
Pandemia
A pandemia escancarou ainda mais os diversos problemas sociais e estruturais presentes no país. Com a necessidade de se manterem ativos, muitos trabalhadores que perderam seus empregos durante este período viram no trabalho autônomo nos aplicativos uma maneira de ter o sustento.
De acordo com uma pesquisa realizada pelo Centro de Análise e Planejamento (Cebrap) e pela Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), o país tem 1,6 milhão de pessoas trabalhando como entregadores ou motoristas de aplicativos.
“Esta categoria está hoje precarizada, com condutores realizando suas atividades sem segurança jurídica, trabalhando horas para angariar o mínimo de subsistência, o que demonstra quase um trabalho análogo à modernidade”, explica Kaique.
Exemplos de outros países podem ser seguidos
Nos últimos anos, decisões em vários países passaram a garantir ao trabalhador alguns direitos trabalhistas, como em Nova York, na qual foram aprovadas seis leis pelo conselho da cidade, que incluem salário mínimo, transparência sobre as gorjetas deixadas pelos clientes e licenças oficiais para trabalhar.
Já no Reino Unido, a Uber perdeu a batalha na Suprema Corte britânica e, após a decisão, passou a conceder salário mínimo, férias remuneradas e um plano de pensões aos mais de 70 mil motoristas do aplicativo. “O mundo se viu obrigado a criar leis e diretrizes para abranger o novo modelo de trabalho”, comenta o advogado.
Aposentadoria
A falta dos direitos básicos, como salário estabelecido, férias, FGTS e INSS, influencia diretamente não somente no presente do trabalhador, mas também no futuro. De acordo com o estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas um a cada quatro motoristas e entregadores autônomos paga contribuição ao INSS.
“Provavelmente esses colaboradores terão que trabalhar até uma idade avançada, e a única forma de garantir os preceitos fundamentais de seguridade social e a conciliação das leis do trabalho, é por meio da CLT, que apesar de ser taxada como “retrógrada”, mostra-se extremamente necessária”, indica o especialista.
Os desdobramentos da situação entre Uber e as diretrizes de trabalho brasileiras ainda devem se estender por algum tempo, e a empresa já sinalizou que pretende oferecer R$ 30 por hora aos motoristas, mas ainda sem vínculo empregatício, o que manteria os profissionais sem as garantias definitivas das leis trabalhistas do país.
Disputa no judiciário
Em dezembro do ano passado, a 8ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) entendeu que o motorista de aplicativo tem relação de submissão clássica com a plataforma, reconhecendo o vínculo. O acórdão representou um marco importante não apenas nas batalhas jurídicas protagonizadas pela empresa na Justiça do Trabalho, mas por ser mais um precedente a nortear toda a jurisprudência em torno da chamada gig economy, ou economia de “bicos”, no país.
Já em julho deste ano, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu processo em trâmite na Justiça do Trabalho que reconheceu o vínculo de emprego de um motorista com a plataforma Cabify. A decisão se deu na Reclamação (RCL) 60347, ajuizada pela empresa.
Com o impasse, o caso deve ser decidido no plenário da Suprema Corte. “Na verdade, não há uma decisão unânime no Supremo Tribunal do Trabalho, enquanto algumas turmas reconhecem o vínculo empregatício, outras tem decisões de rejeitar o reconhecimento da relação de emprego, por isso há tantos processos enviados ao STF, a fim de pacificar a decisão, para que o judiciário tenha um parâmetro a ser seguido”, explica Kaíque Araújo.
E o Congresso?
O STF entende que o Art. 3 da CLT não é parâmetro para reconhecer o vínculo empregatício entre a UBER e o motorista, o judiciário tem tido dificuldade de gerar uma decisão unânime e contundente. Enquanto a Corte não estabelece um parâmetro geral, caberia – em tese – ao Congresso de movimentar.
“Cabe ao Legislativo criar leis que regulamente as plataformas digitais e traga segurança jurídica para o condutor (que no caso é o hipossuficiente da relação). Assim as plataformas terão suas obrigações estabelecidas na seara trabalhista, seja em uma nova reforma ou em uma lei esparsa que a regulamente” sugere o advogado.
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