Hoje no jornalismo há dois problemas crônicos: a desinformação e os chamados desertos de notícias. O primeiro é o uso de técnicas de comunicação para induzir a erro ou dar uma falsa imagem da realidade. O segundo acontece quando um município que não possui veículos de imprensa sediados em sua área geográfica, e que portanto conta com cobertura jornalística do noticiário local.
Separados, os dois impedem que o cidadão consiga ter uma percepção autêntica da realidade. Quando combinados e nas mãos de poucos é um perigo para a democracia e para a própria estrutura da sociedade, porque concentra poder nas mãos de poucos, que podem moldar essa percepção da maneira que quiserem, atendendo a seus próprios interesses.
Alguns episódios ao longo dos últimos anos no Amazonas são um ótimo exemplo dessa situação. E voltaram a se manifestar em alguns episódios durante essa semana e mostram como o aparelhamento da imprensa local está atingindo níveis surreais.
O escândalo da semana
O grande escândalo da semana, que tomou de assalto todo o noticiário local, redes sociais foi a famigerada pintura nas pedras portuguesas no calçadão da praia da Ponta Negra, zona Oeste de Manaus, antes do aniversário de 354 anos da capital.
Em uma manobra suspeita, a prefeitura pintou uma ciclofaixa em cima de um dos maiores pontos turísticos da cidade, disse ter autorização do Ministério Público para fazê-lo, foi desmentido e mais tarde o portal Manaus 360 descobriu que a empresa que forneceu a tinta pertence a empresário ligado ao deputado federal Saullo Viana (União Brasil).
Escandaloso? Sim. Suspeito? Bastante. Precisa ser amplamente checado e investigado pelos órgãos de controle? Definitivamente. O Vocativo já pediu cópia do contrato via Lei de Acesso à Informação (LAI)? No mesmo dia. Mas esse definitivamente não é o fato mais grave da semana.
Tinta x espionagem
E se eu te disser que o setor de segurança do governo do Amazonas já foi alvo de operação da polícia federal DUAS vezes porque lá havia duas quadrilhas usando o aparato estatal para extorquir? E se eu te dissesse que esse mesmo governo pode olhar tudo que tem no seu celular simplesmente colocando seu número em um programa de computador? Pois tudo isso é verdade e foi revelado pela Agência Pública.
Agora faça o seguinte teste: jogue no Google e veja quantos veículos locais além de Vocativo noticiaram essa informação e volte aqui depois. Curioso não? Das três uma: 1) Uma mão de tinta que, no máximo, pode ter hipoteticamente algum esquema de desvio de dinheiro público choca mais do que um escândalo de espionagem em potencial; 2) Não souberam; 3) Souberam mas não quiseram/puderam noticiar.
De cara podemos descartar a segunda opção, já que um veículo local teve a audácia de noticiar a mesmíssima compra feita pelo governador do Pará, Elder Barbalho e simplesmente omitir sem constrangimento o mesmo ato do governador Wilson Lima. E isso é um escárnio com o leitor.
Blindagem
Que há uma blindagem ao governador Wilson Lima isso é evidente. Faço aqui uma previsão: quando fizerem documentários sobre a situação de Manaus na pandemia, entrará para a histórica e chocará o mundo a omissão dos veículos de imprensa locais na cobertura desse caso. Claro que há exceções, mas como categoria, como todo, foi um fiasco.
Muitos especulam que esse silêncio ao problema da sustentabilidade financeira dos veículos por conta da questão de verbas publicitárias. Não parece ser tão simples, uma vez que a prefeitura também paga. Fosse o caso, haveria um silêncio generalizado sobre o episódio da tinta. Se a explicação foi que a imprensa entrou no jogo político, aí é mais grave. Bem mais grave.
Deserto e desinformação
Vamos deixar uma coisa clara: isso não é culpa dos repórteres. Não faltam figuras extremamente competentes nas redações do Amazonas, capaz de trabalhos brilhantes. Eu já estive em redação e sei como é ser censurado por questões políticas. E sei o quanto isso gera de estresse e frustração na nossa categoria, que não à toa é uma das que mais sofrem de problemas psicológicos.
Eu hesito em fazer esse tipo de texto porque faz parecer que o Vocativo é um lobo solitário, um mocinho do jornalismo enquanto os outros são vilões. Nada mais longe da realidade. Um mercado onde não há independência prejudica a todos. Mas se o site existe para fazer um trabalho que outros não podem, precisa dizer o que os outros não podem.
Se o público de um estado não consegue ter uma percepção coerente da realidade porque seus veículos de imprensa deliberadamente impedem assuntos de serem trazidos à tona – ou seja, desinformam – tenho uma novidade: estamos em um deserto de notícias. De nada adianta ter uma redação em uma cidade se o que sai dali não reflete o que está nas ruas.
Eu não sei qual a solução pra isso, mas o problema existe, é extremamente grave e precisa ser posto à mesa. Provavelmente ele passe também por encontrar uma forma de tornar o jornalismo financeiramente sustentável. Mas isso é um desafio que colegas do mundo inteiro estão tentando superar e pouquíssimos conseguiram até o momento.
É inútil falar da obrigatoriedade de diploma se isso não se traduzir em independência editorial e capacidade de cumprir preceitos básicos de ética jornalística. Também não adianta pose e circunstância e fingir que a opinião pública não percebe. Não só percebe como cobra.
Em cada episódio do tipo, aumenta a percepção de que a imprensa, ao invés de um instrumento da sociedade para a promoção da democracia, é uma ferramenta de opressão do Estado. E é extremamente triste constatar que, no Amazonas, isso não está longe da realidade.
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