É um clichê famoso (e real) dizer que o jornalismo é um dos pilares da democracia. Isso ficou muito evidente nos últimos anos, quando o trabalho de jornalistas no mundo inteiro foi decisivo no enfrentamento da pandemia da Covid-19 e a ascensão de regimes de extrema direita pelo mundo. O problema é que, mesmo tão necessária, a profissão passa por uma crise nunca vista antes.
Um dos maiores desafios do jornalismo atual é a sustentabilidade financeira. Tanto grandes corporações quanto veículos independentes sofrem para conseguir pagar as contas. Isso acontece porque o acesso à informação ficou muito mais fácil com a internet e o fluxo financeiro da rede é controlado, via de regra, pelas empresas que armazenam e gerenciam esse conteúdo, as chamadas Big Techs.
Uma das soluções propostas resolver esse conflito é o pagamento de taxas dessas empresas por conta do uso de conteúdos jornalísticos. O relatório sobre o Projeto de Lei 2370/2019, que ficou conhecido como PL dos Direitos Autorais, estabelece pagamento de direitos autorais e remuneração a veículos de imprensa e artistas por reprodução de conteúdo em ambientes digitais. Antes, o tema estava sendo tratado no Projeto de Lei nº 2630/2020, o PL das Fake News, mas foi remetido nessa nova proposta.
(Aliás, esse foi o motivo pelo qual o especial de três partes do Vocativo foi modificado)
A nova versão do texto do relator passa a incluir a sustentabilidade do jornalismo por meio de regras e diretrizes para remuneração de conteúdos jornalísticos digitais produzidos e reproduzidos pelas grandes empresas de tecnologia, como Google e Meta. O problema é que o debate sobre esse projeto ainda está longe de um consenso.
Entraves diversos
O primeiro desafio pra avançar nessa regulamentação são as próprias plataformas. Em todo o planeta, elas têm procurado resistir a isso com ameaças, que vão desde deixar de linkar matérias até atrelar os conteúdos aos serviços delas. Isso já aconteceu em países como a França e a Austrália, onde redes como o Facebook simplesmente pararam de compartilhar conteúdo jornalístico no momento em que a cobrança começou a valer.
O outro impasse está na questão de direito autoral. “Não é com relação ao uso que as matérias tem por parte das plataformas. Então você tem uma tradição na internet de compartilhamento de links e isso de alguma maneira acaba funcionando como justificativa das plataformas para evitar. Só que elas construíram um modelo de negócio delas em cima desse compartilhamento. E às vezes alguns usos deles vão além do de simplesmente repassar link. Então você tem toda uma discussão complicada sobre como se, por exemplo, se eu conto ou se eu coloco lá no meu site os duas primeiras linhas, mais o título de uma matéria”, explica Rafael Evangelista, conselheiro do CGI.br.
Cenário brasileiro ainda mais complicado
O caso brasileiro torna o debate sobre a monetização de jornalistas pelas big techs ainda mais complicado. Com dimensões continentais e regiões extremamente desiguais do ponto de vista social, há diversos espaços do Brasil que sofrem com o chamado deserto de notícias, onde simplesmente não há cobertura jornalística local ou regional. Ou ela é feita por pessoas da própria comunidade, sem registro na profissão.
Outra questão é o ambiente altamente concentrado de imprensa no Brasil. Em países como Estados Unidos e vários da Europa, há leis proibindo a concentração e a propriedade cruzada de veículos de mídia. “Você tinha sistemas complexos de legislação para procurar, por exemplo, ter papéis muito separados entre quem, quem faz, quem distribui e evitar que um mesmo proprietário fosse proprietário de jornal, TV, rádio e pudesse tudo fazer uma sinergia disso tudo e diminuir custos. Isso nunca, nunca aconteceu no Brasil”, afirma Evangelista. Ele lembra ainda que muitos dos grandes veículos no Brasil são contrários a qualquer tipo de regulação nesse sentido.
Como não favorecer quem já tem recursos
Outro desafio desse cenário é impedir que veículos que já possuem base de clientes e financiamento recebam a maior fatia de uma eventual taxação das big techs. Aliás, isso infelizmente parece ser uma tendência na tramitação do PL dos Direitos Autorais.
“Essa era uma demanda dos grandes veículos que têm um lobby forte no Congresso. Uma maneira de fazer com que isso não só os beneficie é fazer uma discussão pública, como a gente está tentando fazer para que os argumentos sejam colocados, as controvérsias sejam entendidas e a gente possa chegar numa fórmula, num modelo que beneficie a todos e ao país e ao interesse público”, sugere Rafael.
As próprias plataformas estavam estimulando esse lobby, contando com o apoio de grandes veículos na tentativa de barrar ou alterar o PL para atender seus interesses. “As grandes plataformas já vinham remunerando alguns veículos justamente no movimento para para conter, digamos assim, uma demanda dos produtores de conteúdo os pequenos produtores. As plataformas já vêm remunerando esses pequenos produtores, só que com critérios que ela tem estabelecido”, alertou.
Defesa dos produtores independentes
Em agosto, mais de 100 organizações e empresas de jornalismo de pequeno porte e independente apoiam o projeto, dentre as quais a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj).
Segundo as entidades, para evitar que os valores hoje destinados à publicidade e aos contratos com empresas de jornalismo pelas plataformas sejam impactados negativamente, o projeto prevê que esses recursos sejam considerados nas novas negociações entre plataformas digitais e empresas jornalísticas.
Outro ponto é que a audiência a ser considerada para estabelecer os valores de remuneração é aquela nas próprias plataformas e não em todo o universo digital, o que favorece empresas de jornalismo que têm uma boa presença nessas aplicações.
A mediação de negociação entre plataformas e empresas de jornalismo pode ser feito por arbitragem privada, mas também pelo Poder Público, o que significa possibilidade de baixo custo para o processo de negociação quando tratar-se de empresas pequenas.
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