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Estudo que viabilizou BR-319 contém erros e ignorou MPF e indígenas

Celebrado por políticos e lobistas, o relatório do Ministério dos Transportes "atestando" a viabilidade ambiental da BR-319 é irreal e possui uma série de erros, segundo ambientalistas ouvidos pelo Vocativo. Ministério Público Federal e Povos Indígenas não foram consultados

Anunciado no dia 11 de junho deste ano, o relatório contendo as conclusões do Grupo de Trabalho (GT) da rodovia BR-319 garantiu viabilidade ambiental para a obra e foi celebrado por políticos e lobistas da região, interessados no andamento do projeto. No entanto, especialistas ouvidos pelo Vocativo alertam que as medidas propostas não são suficientes para evitar sérios impactos ambientais na região. Além disso, representantes de povos indígenas alegam ainda que não foram ouvidos.

O documento aponta que, em tese, há viabilidade para as intervenções no que é conhecido como Trecho do Meio, que vai da Ponte sobre o Rio Jordão ao entroncamento com a BR-230 (km 250 ao km 655,7). E também na Linha C-1, que inclui a travessia do Rio Tupana (km 177,8 ao km 250). A BR-319/AM liga Manaus, capital do Amazonas, a Porto Velho, em Rondônia.

“As medidas que supostamente diminuiriam os impactos ambientais são irreais do ponto de vista da conservação da biodiversidade. Além disso, cercar a rodovia para impedir o desmatamento, é completamente ineficiente”

Lucas Ferrante, pesquisador da Universidade Federal do Amazonas (UFAM)

Segundo o Ministério dos Transportes, a rodovia pode se tornar o principal acesso terrestre destes estados com o restante do país. A obra é defendida como avanço econômico por políticos locais, fato contestado um estudo de 2013 que ainda será abordado no Vocativo. No entanto, são os impactos dela ao meio ambiente o principal entrave. E ao que parece, o relatório não supera esse problema.

Dentre as medidas de monitoramento e controle de passagens, está prevista a colocação de 500 quilômetros de cercamento para garantir a preservação ambiental no Trecho do Meio e implementação de 172 passagens de fauna. Também se pretende criar mais uma unidade de conservação e o estabelecimento de dois portais de fiscalização, sendo um no início e outro na chegada do Trecho do Meio.

“Há um claro aumento da imigração por conta da estrada e isso vai piorar à medida em que ela ficar mais trafegável”

Philip Fearnside, doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa)

As soluções propostas, no entanto, não convenceram especialistas. “As medidas que supostamente diminuiriam os impactos ambientais são irreais do ponto de vista da conservação da biodiversidade. Além disso, cercar a rodovia para impedir o desmatamento, é completamente ineficiente. Muitos estudos científicos já apontam isso, além do impacto no translado da fauna”, alerta Lucas Ferrante, doutor em Biologia (Ecologia) e pesquisador da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

Outro problema crônico da estrada não solucionado no relatório não tem a ver diretamente com a rodovia, mas com uma consequência dela. “Há um claro aumento da imigração por conta da estrada e isso vai piorar à medida em que ela ficar mais trafegável”, Philip Fearnside, doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).

O aumento da presença humana na região tem sido apontado como grande responsável pela piora nos índices de desmatamento e queimadas no Sul do Amazonas, na área de influência da BR-319. Ainda segundo Fearnside, o paradigma não é só a rodovia, mas o que ela causa em toda a região. Segundo o biólogo, o relatório tem como principal erro partir do princípio que a obra tem de acontecer e ponto final. “Partem de uma ideia e tentam justificá-la”, avalia.

Infraestrutura urbana é argumento usado em defesa da obra. Foto: Orlando K. Jnunior

BR-319 já causa impactos atualmente

Um ponto levantado pelos cientistas é que a BR-319 já vem causando estragos desde desde a criação da Zona de Desenvolvimento Sustentável dos Estados do Amazonas, Acre e Rondônia (AMACRO) e da licença de manutenção, concedida em 2022, fato denunciado por diversas organizações de defesa do meio ambiente.

De agosto a novembro de 2023, durante a chamada “temporada do fogo” no Amazonas, o estado teve mais de 17 mil focos de calor. Desses, aproximadamente 40% se concentraram em 12 municípios da área de influência da BR-319, que registraram mais de 7 mil focos de calor em seus territórios. A temporada, marcada pela fumaça que encobriu os municípios da Região Metropolitana de Manaus, chamou a atenção para a situação do desmatamento e queimadas no estado, especialmente os associados à BR-319.

“Esse desmatamento é exponencial, inclusive afetando territórios indígenas. O DNIT, por exemplo, conseguiu aterrar todos os igarapés ao longo da rodovia, inclusive diminuindo o fluxo de água para áreas indígenas, que já sofre com aumento de malária, diminuição de peixes, diminuição de água potável. Então, os danos causados apenas pela manutenção são muito grandes e o GT ignorou esses danos, que basicamente eles fingem que não existem”, alerta Lucas Ferrante.

Mesmo com a piora nos índices ambientais nos últimos seis anos, especialmente durante a gestão do governador Wilson Lima, o Amazonas ainda possui uma considerável área de floresta preservada. Com a recuperação dos trechos da BR-319 previstos nesse projeto, a situação pode mudar drástica e rapidamente.

“A emissão de carbono não acontece apenas na repavimentação da rodovia. Jogar toda essa quantidade de CO² na atmosfera terá impacto direto na qualidade de ar da região e o abastecimento de água para o agronegócio brasileiro. A área desmatada pela simples influência da BR-319 pode ser decisiva para o ponto de não retorno do clima do planeta” Philip Fearn

“São medidas completamente irrealistas, anti-científicas, de um grupo que não tem, de fato técnicos da área da biologia, da conversão, da conservação. E por isso que a gente vê esse resultado tão esquizofrênico sendo pautado”, lamenta Ferrante.

Indígenas e MPF não foram consultados

No comunicado oficial do dia 11/06/2024, o Grupo de Trabalho (GT) do Ministério dos Transportes alega ter sido criado em novembro de 2023 tendo como premissa para condução dos trabalhos a participação social. “Assim, buscou diálogo com representantes da sociedade civil, academia, organizações não governamentais, iniciativa privada, sindicatos, associações representativas das comunidades diretamente impactadas pela obra, incluindo indígenas e demais povos tradicionais que vivem na região, e representantes dos governos federal, estadual e municipal”, afirma o Ministério em seu site oficial.

No entanto, não foi o caso. Procurada pelo Vocativo, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) lembrou que as audiências públicas sobre o Relatório de Impacto Ambiental do Trecho do Meio da BR-319 ocorreram no final de 2021, ainda em contexto de pandemia. A Coiab disse integrar o Observatório da BR-319, e ter se posicionado de forma contrária à realização das audiências, por razões expostas em nota disponível neste link.

“As audiências ocorreram de forma imposta pelo Dnit, sem levar em consideração os apontamentos das organizações da sociedade civil, e sem assegurar a possibilidade de ampla participação, especialmente dos povos indígenas”, afirma a Coiab. Em resposta ao site, o Ministério Público Federal (MPF-AM) também foi taxativo: “o MPF/AM não foi consultado”. Procurados ao longo da semana, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Ministério do Meio Ambiente (MMA) não se manifestaram.

Também procurado pelo Vocativo, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) foi evasivo ao ser questionado sobre se foi consultado para a produção do relatório. A pasta afirmou que acompanha e monitora todas as ações, obras e empreendimentos que possam ter impacto em terras indígenas. “Além disso, o MPI tem reforçado, junto aos demais ministérios do Governo Federal, de que todas as ações que impactem povos indígenas, independente do grau, precisam ter, obrigatoriamente, a consulta prévia e livre aos povos indígenas”, afirma. 

O MPI afirmoutambém ter feito um alinhamento permanente e um diálogo permanente com o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) para que os povos indígenas sejam envolvidos nas tratativas em qualquer obra com uma série de itens e requisitos que resguardem os modos e direitos dos povos indígenas que aconteçam em seus territórios. Algo que, segundo a Coiab não aconteceu.

“O MPI defende o cumprimento do procedimento da consulta livre, prévia e informada, como estabelece a Convenção 169 da OIT, da qual o Estado Brasileiro é signatário, em respeito aos direitos dos povos indígenas e aos saberes daqueles que protegeram as florestas e suas bacias hidrográfica durante séculos. Essa consulta evita potenciais impactos socioambientais para a região”, finalizou a nota.

Organizações civis também foram ignoradas

Em nota divulgada nesta sexta-feira (21/06/2024), os coletivos Observatório BR-319, Observatório do Clima e GT Infraestrutura e Justiça Socioambiental afirmam que o documento ignora pareceres e notas técnicas de órgãos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) sobre as graves consequências que o asfaltamento da BR-319 pode trazer ao meio ambiente.

A nota também destaca informações distorcidas no relatório sobre a ampla participação da sociedade civil e dos povos indígenas nas audiências públicas do GT BR-319. A mais grave é a de que um representante do povo indígena Parintintin teria relatado que são favoráveis à rodovia e que houve aprovação dos estudos, apresentados em audiências públicas como requisito para emissão da licença prévia. A informação é negada pela liderança Raimundo Parintintin, que participou da audiência, mas como coordenador-regional da Coordenação Regional Madeira, da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). 

O relatório também afirma que não houve contribuições ou apontamentos por parte das organizações da sociedade civil convidadas para as audiências públicas a respeito das obras na BR-319; porém, o convite às organizações foi feito em cima da hora, impossibilitando a participação presencial. O GT também não disponibilizou links para a participação on-line das organizações. 

“O relatório técnico elaborado em 90 dias pelo Grupo de Trabalho apresenta lacunas significativas que comprometem a capacidade de abordar e gerir adequadamente os impactos ambientais e sociais de um projeto de tal magnitude”, diz trecho da nota das organizações. 

Processo histórico

O traçado completo da BR-319 possui 918 quilômetros de extensão que atravessam o Bioma Amazônico. As obras iniciaram em 1968, mas o projeto nunca foi concluído, sendo marcado por décadas de impasses, abandono e falta de manutenção dos trechos inaugurados, o que resultou no fechamento da rodovia em 1988.

Lobby pela rodovovia é antigo, mas voltou com força recentemente. Foto: Divulgação / Dnit

Próximas etapas

A próxima etapa dos trabalhos acontece em julho, quando terá início uma série de reuniões para a elaboração de Acordos de Cooperação Técnica, entre o Ministério dos Transportes e os demais órgãos envolvidos no empreendimento.


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